sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

AINDA II

Meu olhar pára nas suas mãos e fica. Um livro surrado de capa vermelha, você emoldurada entre a parede e a cômoda, seus lábios distantes e embaçados se movendo em versos mudos e, talvez, escolhidos.

São 2h da manhã e eu folheio mais de 400 páginas tentando ouvir sua voz que ficou suspensa em algum lugar que não me lembro. Falha na memória? Não... Memória pedinte, viva, chamando pra ser inventada. Essa memória é um “ainda”. Advérbio de tempo, modificando as circunstâncias da (não)ação. Querer é verbo? O querer se modifica sozinho, atropela vírgulas, pontos, parágrafos, mas com o ainda aceita nossas reticências... ainda é meu permanecer no tempo. O ainda é uma alternativa para o querer inquieto... 

Volto ao mistério da memória. Continuo folheando até a reinvenção dos seus versos mudos, ocupo o lugar do silêncio e escolho(será?...), página 106:

“cabeceira

Intratável.
Não quero mais pôr poemas no papel
nem dar a conhecer minha ternura.
Faço ar de dura,
muito sóbria e dura,
não pergunto
“da sombra daquele beijo
que farei?”
É inútil
ficar à escuta
ou manobrar a lupa
da adivinhação.
Dito isto
o livro de cabeceira cai no chão.
Tua mão que desliza distraidamente?
sobre a minha mão”
(Ana Cristina César)

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

AINDA I

Em meio a um sarau involuntário no café
(aliás, pode-se confiar em café?)
escapa um cílios transgressor:
"É verdade, a falta não é sua mesmo, já te disse. Mas a saudade, ah!, a saudade..."






Para ouvir: como disse Xico Sá, uma música qualquer.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Daquilo que não se nomeia I

Nota da autora: Eu Te Amo, Maria Lúcia! Confie em mim... (11/12/2013)

...
        Nunca havia estado ali antes, ajeitou o cabelo atrás das orelhas e conferindo as horas no celular caminhou até as portas de entrada. Olhou rapidamente lá para dentro: "a princípio, nenhum conhecido..." Não quis entrar, ao invés disso, se pôs a observar a rua como se estivesse absolutamente confortável com tudo aquilo. Conferiu as horas mais uma vez.
Neste momento ela esta prestes a ficar com medo de estar sendo observada! Vamos aproveitar esse incômodo, para conhecer a nossa personagem: parada em pé na calçada, aparentando estar muito atenta à árvore de flores amarelas à sua direita, encontra-se Maria Lúcia. Ela me reprovaria se ouvisse dizer isso, não lhe agradava muito o nome. Por mais que gostasse da avó, gostaria ter herdado outra coisa dela que não a alcunha. Por exemplo sua habilidade em dobrar coisas. Me refiro aqui a todo tipo de coisas, desde camisetas, passando por lençóis de elásticos e também origamis. Dona Maria Lúcia era realmente muito boa nisso! A neta, coitada, da avó ficou só com o nome mesmo.
         Preferia ser chamada de Malu. De onde viria tanta implicância? Maria Lúcia parecia ser um nome perfeito para uma pacata senhora de cabelos brancos que era boa em dobrar coisas. Esse era o problema! A Maria Lúcia da nossa história não é a avó, mas a neta que está longe de ter cabelos brancos. Mas os velhos um dia foram novos - poderíamos lhe dizer... "É verdade. Ainda assim, seria o nome de uma criancinha em alguma casa de décadas atrás."
Essa criancinha definitivamente não foi Malu! Malu era contemporânea, versátil... Teve Super Nintendo, assistiu Rei Leão, cantou Mamonas Assassinas sem entender a letra, colecionou palitos de Frutilli. E então cresceu, jogou 'verdade ou consequência', saiu no inverno sem blusa de frio, se deu o direito de comer a sobremesa antes do almoço, se cadastrou nas redes sociais da moda, tentou vestibular, passou, começou a faculdade...
E especificamente hoje, encontra-se nessa história parada de pé na calçada com o celular na mão, desejando muito poder ser Malu e se sentindo cada vez mais, Maria Lúcia...
Já estava ficando desconfortável. "O que pensariam dela, parada de pé ali sozinha?" Ora, poderiam começar a reparar, falar do seu cabelo, suas roupas, sua obsessão em olhar as horas no celular... "Por que não conseguia deixar o aparelho quieto?"
Resolveu tomar uma atitude! Ajeitou os óculos sobre o nariz e passou pela porta como se fizesse aquilo todos os dias. Olhou em volta displicentemente e descobriu um painel grande com cartazes, lendo anúncios ficaria ocupada.
Leu alguns informes que não entendeu, viu cartazes de pessoas vendendo um fogão seminovo, procurando cachorrinhos perdidos, doando gatos. Alguém anunciava: 'uma barraca de acampamento para 2 pessoas + colchão inflável de casal: vendo ou troco por carrinho de bebê e berço – Aberto a negociações!' Ela não conseguiu conter uma risada. Silenciosa, mas o suficiente para esboçar um sorriso. "Droga!" Só agora percebeu que ainda não tinha sorrido desde que chegara lá. "Será que estava com o rosto tenso?" Talvez fosse pior, poderia estar com a testa levemente franzida, com aquela expressão meio brava, fechada... "E esses braços cruzados?Estaria assim há muito tempo?"
Uma vez ouviu dizer que braços cruzados eram uma espécie de proteção, mostrava que a pessoa não estava aberta às outras, coisas de expressão corporal. Ela até quis ler sobre o assunto, mas mudou de ideia. Teve medo de que ficasse obcecada por analisar o corpo e sua linguagem... Não só o corpo dos outros, mas o dela próprio. Ficaria enclausurada entre os pensamentos e seus reflexos físicos. "Pior! E se o corpo expressasse na verdade o que ela sentia e que definitivamente não queria pensar?"
Fomos cruéis com ela agora... Talvez por isso tenha despertado dos pensamentos e reparado que seu olhar estava perdido diretamente na direção de um cartaz anunciando uma espécie de festa, com cantores que ela desconhecia. Tratou de olhar para outro lado, não queria parecer interessada naquele tipo de evento!
             Sentou num banco vazio e pegar o celular. Conferiu email e redes sociais, nada demais. Guardando o aparelho, reparou que uma pessoa à sua frente lia um livro. Adorava descobrir o que estavam lendo perto dela. Observava a maneira como as pessoas passavam as páginas, se usavam marcador para acompanhar as linhas, como mudavam os dedos de lugar durante a leitura. Achava um momento tão bonito ler um livro... Como ela gostava do conforto da leitura em lugares públicos! Sentiu vontade de ter um livro com ela. "Mas que livro poderia ter trazido? Livros podiam dizer muito sobre o leitor!"
Aliás, todas essas preocupações pretendiam criar que tipo de pessoa? Qual imagem ela gostaria de passar?

QUEM É VOCÊ?! - eu pergunto

            Mas minha pergunta só foi ouvida por um milésimo de segundo. E insistir nela poderia sacrificar de vez a personagem. Digamos que durou tempo suficiente para ela entender que precisava mudar de assunto, ficar tranquila, mais leve...
"Para quê tantas preocupações, afinal? Era alguém esperando, como tantos outros. Que mistério há nisso"
Pelo fluxo de pessoas em pé percebeu que estava na hora. Levantou-se satisfeita, sem sequer olhar o celular. "Tudo estava resolvido, talvez ela realmente não precisasse ser ninguém ali!" E naquele momento, caminhando para a sala, ser ninguém lhe pareceu ótimo, incrível! Algo muito melhor que ser...

               - Seu nome, por favor?
- Hã?
- Seu nome... – insistiu a mulher parada à porta levantando uma pilha de crachás.
- Maria Lúcia.
- Desculpe, pode falar um pouco mais alto?
- Maria Lúcia – repetiu
- Ah, sim. Maria, Maria, Maria... Achei! Ma-ri-a Lú-ci-a! – leu, sorrindo – Prenda em um lugar visível e não tire até terminar.
(escrito inicialmente em julho de 2012)

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Àquelas e a seus(nossos) silêncios moventes

“Ouve-me, ouve meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. Quando digo “águas abundantes” estou falando da força de corpo nas águas do mundo.”
Clarice Lispector em Água viva

As melodias nos misturam, mulheres-mãe, mulheres-menina, mulheres-irmãs, mulheres-amigas, mulheres-avós…  Um chamado: é preciso! Apesar de... Em troca de... Por causa de… A música incita o corpo que vibra, liquefaz... Os acordes me preenchem, fecho os olhos, aceito o mergulho e giro, giro, giro...

Tragada por nossas próprias ondas, prossigo. Uma noite de luta, de protesto, de fluxo, de composição, de afeto... Noite construída e derramada...

Histórias fluem sussurradas nos ouvidos para serem escritas no espaço. Uma escrita feita da dança, do movimento - pulsar efêmero -, para ser diluída e apanhada. Constantemente refeita em um novo “instante-já que de tão fugidio não é mais”, como diz Clarice. “Esses instantes que decorrem no ar que respiro: em fogos de artifício eles espocam, mudos no espaço.”

É de um dizer impossível que o corpo se alimenta e segue. “A música é o silêncio em movimento”, escreveu Sabino. E assim também éramos nós, tecendo as dores, as faltas, os gritos contidos, os suspiros. Desenhando memórias (re)inventadas no balanço do ir e vir de tempos suspensos.
...

(O corpo que acorda dói o movimento do mar de dentro, ressaqueado. Dor boa! A garganta ainda amarga o eco da voz, tenho sede. Tenho sido, sou-me. Com todas nós...)




(Essa escrita faz parte das conseqüências inevitáveis da ação performática “Em caso de dor, eu danço” realizada em Mariana-MG em 13 de novembro de 2013. Agradeço a todas as mulheres que de alguma maneira compuseram aquele momento.)


domingo, 10 de novembro de 2013

Das primaveras (a)temporais III



"As mãos era a parte de dentro que não controlávamos. Sempre com algo que nos escapa, como uma sinceridade a mais, uma surpresa para quando estivermos distraídas. Fato era que as deixávamos livres e elas seguiam sempre à frente, sem pensar... Alheias a possíveis tentativas de esconder nossas verdades pulsantes..."

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Demaseios devaneados


Você me excede, eu cedo
você tarda...
Indócil, busco em excesso
Cesso.
O tempo nos ultrapassa
e passa... Reticente...
Você sente acontecer?
"Sê!" (um grito, um sussurro, um eco)

quarta-feira, 2 de outubro de 2013


Para ouvir: algo que compõe sobre o silêncio da gente...

(seja isso o vento, os passarinhos, os gritos da vizinha, aquela música que acalma, aquela outra que faz chorar, o batuque do carnaval, o som da cachoeira, o compasso do coração, o choro do bebê, enfim...)

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Sobre vôos presentes para primaveras simbólicas ou Era outra vez setembro


E você chorou como choram todas as pessoas que sentem o coração mudar de lugar. Eu vejo seu olhar perdido nela, estacionado, fotografando o tempo... Ela caminha entre os móveis e fala, firme, o inevitável... Que “as coisas são assim mesmo”, “a gente não controla isso”, ela “não queria”, “se pudesse escolher”, “MAS.” (   )... Conjunções adversativas, contrastando os lados do discurso. Dividindo e criando fronteiras entre opostos que não se separam e formam sentido juntos, em uma mesma direção. Semelhante a vocês... Em seguida ela te pede desculpas.  Talvez esteja se sentindo culpada, talvez não, é confuso... Mas pede. “Realmente não queria te ver assim”, “não sei o que fazer”, “quero te ver bem”, “MAS.” (   )... E recomeça, tentando evitar que tudo se escape, buscando algo tátil. Como uma pipa que de repente se solta das mãos, vocês correm atrás do carretel e tentam alcançá-lo...  “Você sabe, não é definitivo”, “a gente nunca sabe o dia de amanhã”, “não significa que acabou pra sempre”, “MAS.” (   )... E lá estão vocês tentando amarrar o carretel em algum lugar (onde?) e seguir adiante (para onde?). Ela olha para você. E por fim não importa muito o que ela diz. Você sabe, você conhece. E sente assim mesmo. Como todas nós. Porque o conhecimento não basta em si, é preciso sentir para ter sentido. E dói... Você pensa nas vezes em que ela esteve nua no seu quarto. Lembrando de quando ela chorava sem dar voltas em torno dos móveis, apertada em seus braços... As mãos! Que agora brincam inconscientemente com objetos aleatórios em cima da sua mesa. Aquelas mãos em fuga, em busca. Mãos que desenharam sobre seu corpo tanto tempo... Você abaixa a cabeça, numa tentativa de derramar pra fora a memória. E ao erguê-la, você vê o espelho... Um dia seus olhos fotografaram por ali também. Vocês duas nuas e ela em cima de você, o corpo quente, contínuo, de repente você o percebe, refletindo os momentos... Sorri. Então se vira, afasta o cabelo dela da testa com as mãos, ela ergue os olhos e vocês se veem, perpetuando o encanto. O espelho cúmplice do gozo. Quando duas pessoas se amam o sexo é uma intimidade a mais... Compartilhada como foram suas metáforas, suas conversas, seus sorrisos... Ela parou de falar. Está triste. Mas se mantém firme. É preciso. As duas sabem disso. Ela vai embora e você solta o soluço entalado na garganta, perde o fôlego... E nesse instante seu celular já está tocando. Uma amiga, avisando que vai ir dormir com você. As amizades são as mesmas... E elas vão ouvir as histórias das duas e vão consolá-las. Os dias se passam, você sente saudades, quer correr e contar suas coisas pra ela, mas têm que esperar. “Tem que dar tempo ao tempo”, “o afastamento é necessário no início”, “depois vocês podem ser amigas, agora não” (   )... Escreve. Ela teme que você a chame de fria. Mas você não consegue... Quantas vezes viu aquele coração pulsar quase externo ao corpo, compartilhando compassos? Escreve. Amava nela, sobretudo o mistério... Você, tão boa em decifrar, enlaçada na possibilidade de uma descoberta que se refaz... Escreve. E recorda de quando ficava sentada com o notebook no colo envolta em seus textos acadêmicos e levantava o olhar furtivo na direção dela que soltava histórias riscadas à mão naquele diário de bordo... O tempo vai passando e você hesita em desaparecer com os vestígios dela da sua casa. Escreve. O último vidro de Nescafé fica na estante, você não terá coragem de jogá-lo fora. Ele incorpora aquelas partes da casa que existiam junto com ela... Quem sabe mexendo do lado de fora não se organiza o lado de dentro? Por fim vai ir acumulando tudo num fundo de gaveta ou guarda-roupa para escolher o momento de inquietar a memória. Escreve. E se depara com lembranças que não se guardam para mais tarde. Como aquela cadela vira-lata que você adotou e ela insistiu em colocar o nome de uma escritora, ou de uma personagem de uma escritora. Macabéa, foi batizada! Meio contra a sua vontade, mas com a promessa de que ainda teriam uma Virgínia e uma Felipa. Macabéa agora é um permanecer no tempo. A memória pulsante, marcada. Ah, Clarice e suas 3 pernas!... A caneta ocupa o lugar do terceiro apoio e você caminha. Escreve.

O tempo... Ele passa. E o carretel permanece amarrado. De vez em quando você o encontra sem querer, outras vezes vai onde sabe que ele te espera... E observa a pipa num encontro de azuis. Ela também visita o carretel... Existindo caminhos até ele, permanece a promessa de que um dia possam estar lá ao mesmo tempo

(   )... (  .).. ( ..). (...)


[o vento sopra mais grãos na primavera]


Para ouvir: Tempo de Pipa - Cícero

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

A dupla


Era noite de lua no céu e primeiras vezes... Medos, dúvidas, novidades. E aquele frio na barriga que mistura as boas lembranças recentes com as incertezas do que pode vir a ser... A escada, cúmplice, acolhia nossas confissões iniciando (re)encontros... Quem diria?... Os extremos às vezes são mais próximos que os meios. Sensibilidade, escuta, a mão estendida... A cumplicidade selada, velada. A revelação não dita, mas sabida, sentida... Sol, lama, embate... As presenças se construindo no fundo do ônibus, entre músicas e códigos. A promessa cumprida e a segurança reafirmada. Caminhos abertos, caminhos adjacentes... Outras escadas e a revelação explícita, urgente, temerosa de um fim programado que não viria (ainda...). A ladeira colorida, o som do tambor. E os corações marcando compasso... Seguindo e ignorando todas as teorias bem elaboradas de quem tenta achar um lugar para estacioná-lo. Desde os tempos de all star pintados, quando ainda não haviam cachecóis para se arrumar, 4 mãos caminham juntas unindo metáforas (nem sempre) acadêmicas...

quinta-feira, 8 de agosto de 2013



Resolvi te guardar pra mais tarde. Guardei para ficar brincando aqui dentro, revirando caixas, se escondendo atrás de pés de jabuticaba, ralando os joelhos e jogando futebol de bicicleta. Guardo para sentarmos à mesa com as cervejas nunca bebidas, com as fofocas do fim de semana, com os sonhos da noite anterior. Te guardo conversando das cores do Almódovar, dos livros da Adélia, dos amores, das reticências... Contando dos ventos, cachoeiras e estradas de terra. Compartilho escritas, ansiedades e as promoções da sapataria. Dias depois, com arrepios num estômago que pede alento, te busco, te desembrulho, experimento... Melhor que chocolate! E haja metafísica...

terça-feira, 2 de abril de 2013

Mistura, aconchego e pequenas composições cotidianas


Então já não era mais segunda-feira e lá estava você, ajeitando calmamente algumas molduras quadradas na parede... Sentada na mesinha redonda que faz conjunto com duas cadeiras elegantes de três pernas, eu observo atenta os seus movimentos enquanto minhas mãos brincam em cima da mesa com peças de cerâmica que moldei num curso de anos atrás. Separadas, suas fotos emolduradas e minhas cerâmicas nos apresentam uma vida não compartilhada... Porém juntas, se transformam em momentos dessa casa que agora se faz nossa.

Nossa como? quando? por quê? para quê? Nossa... (e você levantaria os ombros com cara de quem aprecia me mostrar a inevitável beleza das coisas inexplicáveis...) Hoje estamos assim, amanhã, quem sabe? Sem cômodos muito bem definidos. Compúnhamos um espaço em harmonia, em movimento, nos misturando, (re)descobrindo, nos (re)conhecendo...

O jeito como você agora parou na porta no meio do passo de costas para mim, apoiando uma das mãos no marco de madeira e espiando pensativa, por exemplo. A perna de trás permanece na ponta do pé, desenhando o tempo de uma ação suspensa... Nesse meio instante, eu penso no balanço de madeira que eu tinha quando era pequena e lembro também de que eu gostava de virar a rede na casa de vó formando um casulo e me balançar ao contrário, com o corpo na parte de baixo, agarrada ao tecido, e que seria feliz colocar uma rede dentro de casa. E enquanto eu procuro um espaço onde dê pra balançar, você já transpassou cômodo adentro e no fluxo completamos escolhas...

Na espera de pequenas surpresas cotidianas, me permito ir com seus movimentos... Meus olhos seguiram encontrando parte do cômodo onde você entrou e eu penso que gosto de ladrilhos coloridos e que talvez pinte um daqueles quadradinhos brancos, em cima da bancada, de verde! Aquele, perto da caixinha de chás. Então quando você fosse escolher o chá, me encontraria ali e seria você também. E talvez você trocasse a caixinha de lugar e colocasse, não sei, uma flor ao lado do azulejo verde! Um cravo. Ou lírios... Violetas, margaridas, crisântemos, espatódeas? E quando eu fosse descansar os olhos no azulejo seria você a flor e eu também me encontraria...

Você voltou e está sentada do outro lado da mesa na nossa cadeira de três pernas, com uma xícara vermelha saindo fumaça e mexendo displicentemente um sachê de chá. Eu olho para baixo e tenho uma xícara amarela... “Você ainda não sabe que eu não gosto de amarelo!” – me surpreendo. “Será?” A xícara amarela é um pequeno convite. Você segura a xícara com as duas mãos e os cotovelos apoiados na mesa e sopra o chá de leve formando pequenas ondas na superfície... Se eu fizesse o mesmo agora, embaçaria meus óculos e talvez você achasse divertido! Antes de beber, você ergue os olhos da sua xícara e me observa com as sobrancelhas levemente levantadas em uma expectativa encorajadora... E eu me penduro nesse instante assim como você se pendurou no marco da porta, e meus olhos contornam sua boca, seu pescoço, seus ombros, descem pelo seu braço e encontram seus cotovelos ao lado de uma peça de cerâmica. Pego a xícara na minha frente, arrisco um gole, e você está sorrindo. Sorrio de volta, tímida e cúmplice. A partir de hoje acolho xícaras amarelas. Espero que você encante azulejos verdes...

segunda-feira, 25 de março de 2013

Das primaveras (a)temporais II


O sorriso do Gato no céu não dita o caminho... Alice vem trazendo o encontro com o outro refletido no espelho, somos múltiplos... É preciso atravessar e é preciso coragem... Ou displicência , como quem parece não ver e de repente já está lá... Nos percebemos aqui dentro...Eu que pensava que a arte e o amor fossem parecidos e tive medo dos dois... Assumir-se e transbordar-se em entrega... Eu me derrAMO...

(em conjunto, Gato, qualquer caminho servia, até se perder parece divertido...)

Das primaveras (a)temporais I


Pelo menos hoje o cheiro já não era de Nissin!...

E é assim que eu (re)começo... Como um tropeço, um ato estabanado que parece pôr em descompasso toda a poesia do título... Somos nós...

Nós que atam, desatam, enlaçam...

Tantas vezes nos perdemos entre( )linhas, braços, pernas, cheiros... Açafrão, margaridas, tinta à óleo, serragem, sabonete de pêra, maresia, Afrodite, ônibus, cerveja, fumaça, areia, cachoeira, e não nessa ordem...

Porque ninguém ordenada nada, somos fluxo... Mesmo com a angústia do descontrole... Angústia sentida por ambas as partes ao encarar que tudo movimenta... (e aí?...) Talvez seja uma dança esse movimento... E somos conduzidos pelas coisas sem precisar saber...

Ainda me confundo no paradoxo das coisas... “As coisas são assim!” Não me conformo... Nem que sejam assim, nem com o paradoxo... Mas tento aceitar o paradoxo, para que fique suspenso...

As coisas suspensas ficam mais ao alcance dos sentidos...

Era abril quando me rendi aos sentidos... E foi um outono de correspondências... E foi um inverno entre quente e frio que machucou o corpo... Em meio a olhares novos já era outro ano e dançamos carnaval... Momentos... Melhores e piores só existem depois, refeitos na memória...

Em maio tivemos flores antes da primavera...

Os jardins florescem quando as borboletas estão agitadas... e vice-versa...

Hoje, sem alcançar os jardins, eu caminho por cômodos sem portas e me perco nos mesmos lugares... Quantas caixas... Olho para elas e é um convite... Não quero... Não, não quero... Quero tecer cortinas e quero prateleiras... Mas ainda não tenho fitas, nem agulhas, nem madeira, nem cores... É preciso esperar...

Vou fazer uma pilha com as caixas... Um “trepa-trepa”... E vou subir lá no alto enquanto o tempo não chega... Continuo com as caixas, mas tenho paisagem, observo e busco uma saída, um encontro...

Me encontro... Do outro lado, entre sementes de margaridas e com pés que insistem gelados, apesar de meias, sapatos e agasalhos...E eu os aceito assim, como pessoas de extremidades que somos...E meu estômago, talvez com ciúmes, dá sinal agora da sua existência, por que, afinal, ele também conversa...

Onde os jardins de margaridas acalmam borboletas nós falamos de corpo inteiro... Pelas mãos que escapam e encontram... Pelos olhares certeiros e fugitivos... Pelas palavras que atravessam... Metáforas... E tudo é o mesmo reinventando infinitas vezes... Pelas entrelinhas das reticências...


E outra vez, era uma vez. E fim...

sábado, 16 de março de 2013

CONTO(s) DE MIM(s)


Era uma vez: Eu. Outra vez. E mais outras...

E outras Eu. E essencialmente uma! Eram várias, várias vezes.

E éramos Eu, todas elas.

Felizes, nem sempre. Mas vivendo...

terça-feira, 12 de março de 2013

EUforia



Uma primavera de borboletas floresceu em mim!

(tons, contratempos, refluxos)

Falta espaço pra tanto vôo...

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

(pretexto/pré-texto) DORA


Ela apareceu um pouco ressabiada, num dia à noite quando eu estava no meu quarto. Trazia uma fita amarrada no pescoço com uma flor rosa enorme de enfeite que logo me transmitiu simpatia, parecia querer conversar comigo. Seu nome era Dora e ela era uma lagartixa.

Lagartixa albina, dessas que preferem ficar dentro de casa vivendo nos cômodos já tão conhecidos... As manchinhas marrons que ela exibia na pele macilenta, lembrava as mãos de algumas avós que encontrei por aí. É que Dora estava velhinha... Não pensem mal do meu exemplo, eu realmente gosto das mãos das avós. E eu gostava das machinhas da Dora, apesar de não saber se ela mesma gostava. Desconheço quão dura pode ser a velhice de uma lagartixa...

Ela veio caminhando com um olhar cansado e decidido que me assustou. Enquanto se aproximava, ficando mais nítida, eu compreendi seus desejos e temi profundamente a visita aquela hora da noite...

O fato é que Dora esperava que eu escrevesse sua história. E ela não estava disposta a explicar muita coisa. No seu posto de lagartixa vivida e experiente ela sabia que havia encontrado uma pessoa que não precisaria de muito para criar o que ela queria. Não importava a ela que eu soubesse ao certo seu local de nascimento ou se ela era boa em caçar mosquitos. Era perspicaz o bastante para saber que tudo que eu precisava estava ali: representado no contorno escuro de uma pele que fora muitas vezes amputada e regenerada no mesmo lugar e servia hoje de apoio para mais uma nova cauda.

Dora era uma lagartixa que passara a vida inteira tentando cortar o próprio rabo!...

Se você, leitor, for um pouco esperto pode perceber que o que a Dora queria não era uma biografia. Ela havia me trazido uma metáfora. E ali ao fim da vida, a oferecia para que eu transformasse num grande ato final!

Encarando aqueles olhos tristes, quase suplicantes, eu queria, sinceramente, aceitar aquela metáfora e escrever uma história que falasse à Dora que o rabo faz parte dela e eu o acho bonito. Que dissesse que ela não é uma lagartixa pior, por ser igual a todas as outras lagartixas que tem rabo. E que ela também não é uma lagartixa pior por não ter compreendido a essência da própria cauda e ter passado a vida negando aquela parte de si. Que ela não tem que se preocupar em ser pior ou ser melhor pra ninguém. Eu queria poder dizer à Dora que ela não precisa se culpar por ter vivido em busca de uma mutilação e que existem outras maneiras de enxergar suas atitudes. Que o importante é ela ter sido e que o não-ser não existe.

Eu queria dizer tudo isso e muito mais. Mas não sei se eu consigo... Lá no fundo eu achei a história da Dora muito triste e não me sentia a pessoa indicada para transformar aquilo em algo bonito, como ela merecia. Preciso admitir que meu primeiro desejo foi poder ser uma cirurgiã especialista em rabos de lagartixas, estudiosa aplicada e conhecedora de novas técnicas. E com todo o meu entendimento eu arremataria os últimos vestígios caudais numa cirurgia perfeita! E a Dora morreria feliz, acreditando ter sido sempre uma lagartixa sem rabo.