domingo, 10 de dezembro de 2017

talvez você


em terceira pessoa, pois talvez você não seja a quem este texto se dirige. à uma terceira pessoa que ocupe o lugar do destinatário como a marca de uma escolha. a terceira pessoa, no caso, ele, surge no texto a partir de sua ausência.

então ele não chega e eu a olhar atenta e esperançosa os carros maiores a descer e subir a rua. não que ele tenha dito que chegaria hoje, eu que gosto de imaginar surpresas, uma forma de não deixar o silêncio tão vazio. revivo repetidamente as memórias boas de nossos dias, como uma história que chega pelo meio e aguarda após a respiração da vírgula o caminho seguinte, mas não só.

por vezes ele me sai da cabeça. então assustada sigo a refazer lembranças da ausência. o dia em que não me olhou, as histórias que não ouviu, o café não experimentado, as pedras que não presenciaram nossas mãos dadas, banhos de cachoeira não acontecidos. tudo isso pensado com um certo rancor, aquele que acompanha a tristeza de quem se vê interrompida do prazer de tantas possibilidades. como um livro cheio de começos belos e apenas começos.

aprecio muito os bons começos.

e dentre os nossos começos um deles se deu pela palavra. sei que nunca se termina no mesmo ponto onde se iniciou, eu não ensaio um fim, não pretendo. sentada ao chão do quarto estamos eu e a escrita, sabendo que deixar vazio o lugar do destinatário não é contingência, é inevitável. escrever é costurar a ausência na terceira pessoa. é, mais uma vez, e sempre, tentativa de achar começo.

um convite.

terça-feira, 28 de novembro de 2017

destinatário




porque ao saber daqueles olhos sobre meu texto me soube mais uma vez mulher.
e quis ficar. havia quase me esquecido de como é se entregar na escrita, doar-se, doer-se a alguém que recebe essas palavras, restos de um corpo em movimento. agora, de volta à página, na novidade de um texto não tão novo, essa urgência: desocupo o lugar do destinatário, é um convite no qual me apresento em papel, poros e pele. nua, à espera de alguém que me acolha e não se assuste. quero fazer sexo com seu texto. mas o gozo é pra ser no corpo, a letra é desejo. quero fazer texto com seu sexo.

sábado, 9 de setembro de 2017

o tom do tempo



um dia ele olhou as minhas unhas pintadas num acaso de vermelho e disse que achava bonito. “tão feminino” – ele falou. durante os meses em que estivemos juntos, cuidei de pintar as unhas... sentava no chão da sala, pausava os estudos naqueles dias de tantos compromissos para me colorir, revivendo o prazer que eu sentia ao observa-lo, distraído, olhando as minhas mãos.
agora é a primeira vez que tenho esmalte nas unhas desde que ele foi embora e por um instante me perguntei, intrigada, se é tempo que me falta para esses fazeres de manicure. em seguida, me posiciono diante da câmera buscando um olhar, os minutos passam sem incomodar. pois não é sobre as horas do relógio que se conta essa imagem, esse gesto, essa escrita...

hoje entendi que o valor do tempo se quantifica é pela medida do nosso desejo.