terça-feira, 27 de novembro de 2012

Reverso (a)


Um ponto de vista sobre Avessa (o), de Sara Meynard,
(com licença e permissão literária)


Resolvi que aquela noite seria diferente: tentaria ignorar o fluxo contínuo de pensamentos que nunca me deixavam em paz. Saí de casa antes do anoitecer disposta enfrentar algo fora de mim mesma.

Os sons de carros e motos eram realmente assustadores, afinal, estava acostumada a lidar com meus silêncios interiores. Como se isso não bastasse, risadas e conversas chegavam até mim e penetravam meu interior como facas. Todo aquele barulho afirmava o mundo a meu redor, lembrando-me constantemente de que não adiantava fugir. Talvez fosse covardia, mas fato era que lidar com meus próprios conflitos já era difícil de mais. Mesmo que a vontade de pessoas fosse grande, ter a mim mesma era muito mais forte, era conforto.

Porém não era conforto que eu buscava agora, caso contrário não teria saído de casa. Abri os braços e respirei fundo, para que entrasse todo cheiro ocre da poluição. Até no ar a presença humana se fazia presente, inseparável. Devagar fui movendo os braços para frente, saindo de mim, aceitando o mundo em minha volta... Até que me deparei com algo. Envolvi-o! O calor de alguém me aquecia, dois corpos se faziam em um, comprimindo-se com força, ligando externos. Que fosse o abraço de um desconhecido ou apenas meus próprios braços que haviam contornado o corpo, não importava.

Só sei que quando criei coragem para abrir os olhos, não havia mais abraço. Apenas o sol se pondo atrás de um prédio. Recomecei a andar, era hora de partir, assim como os raios de luz já o faziam. Caminhava devagar, meu corpo se preparando para a vida, enquanto a noite chegava corajosa, impondo sua presença. Estava um pouco nervosa, era a primeira vez que agia dessa maneira, mas achei interessante a expectativa da fragilidade e segui em frente.

De repente eu entrei. Assim, sem pensar. Abri a porta devagar e vi o corpo dela sobre a cama, delineado pela luz fraca que entrava pela janela. Era estranho para mim ir de encontro a alguém assim. Podia fingir que sabia lidar com aquilo, mas a verdade é que estava medo.

Eu torcia para que o tempo corresse e eu pudesse acabar logo com aquilo, mas ele insistia em demorar a passar. Ela foi fechando os olhos à medida em que eu me aproximava, e permaneceu imóvel. Em nenhum momento parei para pensar sobre o que faria, era necessário apenas agir, seguir o fluxo e não parar. A pessoa que adentrou aquele quarto definitivamente não era a mesma que saiu de casa. Algo nasceu em mim naquela noite.

Não posso dizer que foi um parto sem dor. Mas não desisti, era necessário que fosse assim, que eu não planejasse, que eu não tivesse controle sobre minhas sensações. E que eu causasse sensações alheias. Era hora de me preocupar com o outro e deixar surgir em mim tudo que fosse necessário.

Enquanto caminhava pelo quarto, ouvia suas gargalhadas na cama e isso me encorajava. Em algum momento me livrei das roupas, queria parecer vulnerável, explícita. Ao mesmo tempo precisava mostrar que era capaz de estabelecer contato, que eu sentia, que eu desejava. Sentei-me ao lado dela segurando suas mãos entre as minhas como quem pede confiança, e prossegui. Queria transmitir para alguém toda a paz que eu gostaria de ter naquele momento. Não era necessário falar, apenas agir, não interromper, cada vez mais rápido, contínuo, fluido, intenso!

Sem perguntar a ninguém, o riso tomou conta do quarto. Gargalhávamos alto, juntas. Éramos nós: eu, a outra e aquela. Revertendo momentos presentes. Reinventando o tempo.

Em algum momento o silêncio surgiu, e pouco depois ela fechou os olhos. Eu parti, exausta. Acordei sem ninguém ao meu lado. Mas não estava mais sozinha, o fluxo contínuo de pensamentos agora se dividia na minha cabeça. O que quer que tenha nascido naquela noite, estava ali comigo, me habitando, morando em meu próprio corpo. Assustada, me dei conta de que para estar só seria necessário algo mais que me manter entre quatro paredes. Por um bom tempo, mesmo sem sair de casa, eu teria companhia.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Dos ruídos da gente


Era uma vez a mulher que estava triste e resolve escrever um texto sobre as angústias existenciais. Mas não sabia exatamente sobre o quê. Sobre o cansaço, talvez. Ou a ansiedade. Ou talvez tratando da impotência frente às profundezas da própria personalidade.Para qualquer um desses assuntos, que no fundo significavam tudo e não diziam quase nada, precisaria antes de uma metáfora.Por isso se concentrou no que estava sentindo tentando compreender alguma simbologia possível...

Percebeu uma coisa diferente no ventre e se apegou àquilo. Pensando um pouco, constatou: ficaria menstruada essa semana!

Então, nesse momento, ela deixou de ser a mulher estranha que ia escrever um texto sobre as angústias existenciais e virou uma mulher de TPM. Uma mulher submetida ao (des)controle do próprio corpo...

Simples! Prática e comum.

Agarrou-se a essa resposta universal, guardou suas canetas e foi dormir tranquila.

FIM...

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

EIXO

Quando criança gostava de entrar no banho, fechar os olhos e ficar girando em baixo do chuveiro...

Rodava, rodava, rodava... Até me esquecer de onde estava.

Então parava e tentava adivinhar qual era a minha posição. Com a água quente caindo sobre a cabeça, expandia os sentidos em busca de uma revelação... Às vezes abria despistadamente os olhos só um pouquinho, enganando a mim mesma antes de mentalizar a resposta, sempre certa.

Agora, anos depois, percebo que o mundo gira mais rápido que as brincadeiras de chuveiro... Hoje, maior e com os olhos abertos, observo em volta e não reconheço nada. Pareço ter me perdido após deixar-me levar por tanto tempo. Assustada, tudo que eu queria era poder me abaixar perto daquela criança e sussurrar no seu ouvido:

“Abre olho pra mim e me conta: onde eu vim parar?”


Para ouvir: Roda Viva-Chico Buarque e Fernanda Porto

domingo, 14 de outubro de 2012


Ela gostava de grandes quantidades, era uma pessoa exclamativa. E nunca se contentava com uma exclamação só, tinham que ser várias. Isso mostrava a importância que ela dava a afirmação. Impositiva não era. Nem mandona, caso possa parecer. Acho que apenas chamava atenção aos fatos que deviam ser vividos intensamente. Não havia essa de fingir que não via. O mundo estava ali, convidativo!!!!! Ressaltado!!!!!!!!

O mesmo fazia com as interrogações. Era de uma curiosidade crescente, infinita. Impossível contar quantas ela usava, eu me embolava e me perdia. Por quê isso?????? Ela realmente queria uma resposta????? Às vezes não. Mas mostrava que estava ali, sempre atenta, interessada, disposta a escutar.

Reticências quase nunca usava. Reticências é uma pontuação com hora pra acabar: 3 pontos. Se forem quatro ou dois, não importa, terão o mesmo poder de significar nada. Parecia muita metodologia pra uma vida que tentava se desfazer de regras. É que ela não entendia que a liberdade está nas inúmeras maneiras de se percorrer os espaços entre os pontos para cada vez costurar uma história diferente. O infinito das reticências se faz nas entrelinhas...



Em uma certa manhã de abril, eu falei das suas exclamações... E elas me fizeram perceber minhas reticências!!!!! Passamos longe das saliências de um possível “entre aspas” comum. Rompemos parênteses, para nos abrirmos para o mundo.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

E(n/s)tranha


Começou sem que ela percebesse. Quando deu por si estava remexendo na cadeira como se procurasse uma posição menos incômoda. Pronto, estava feito. Bastava tomar consciência de que havia algo de estranho e aquilo não lhe deixaria em paz. Era sempre assim, contra a sua vontade aquela coisa surgia na região central do corpo. Não sabia bem o que era, parecia algo que vinha do estômago. Talvez fosse inclusive o próprio estômago! Resolveu levantar para ver se passava, andar pela casa, distrair-se.
Foi arrumar sua bolsa, mas ao chegar ao quarto lembrou-se de que já estava arrumada. Não se importou: retirou o que havia e dispôs tudo cuidadosamente lá dentro outra vez. Era uma bolsa retangular, grande, porém estreita, de alça pequena, daquelas que se carrega de um ombro só e não dá para cruzar na frente do corpo.
Com a bolsa em cima da cama colocou os cadernos encostados na parte maior. Em seguida acomodou em uma das laterais a bolsinha de lápis a e na outra caixa dos óculos. Acrescentou um cachecol no fundo e por cima, a carteira e uma maçã que comeria no lanche. Era muito importante para ela essa disposição. Na hora de carregar, a parte onde estava encostado o caderno ficaria para fora e a outra extremidade em contato com o corpo. O caderno garantia o design perfeito. Acomodado ao pano retangular formava uma superfície lisa e plana para quem a visse. A outra extremidade acabava ajustando-se ao corpo de maneira que a bolsa ficava em contato com ela, mais próxima. Desse jeito, era como se a bolsa fizesse parte dela, ‘como se fosse uma extensão do meu próprio corpo...’ – constatou contente, para logo em seguida desanimar de novo. Quisera ela ter domínio de si como tinha dos objetos da bolsa...
Seu estômago parecia ter aproveitado seu momento de distração para ganhar vida própria. E, ao contrário dos objetos guardados e ajeitados cuidadosamente, ela não sabia o que fazer com ele. Parecia se esforçar por ganhar mais espaço, como se a sua localização, logo abaixo do diafragma, espremido entre o esôfago e o duodeno não bastasse para ele. Queria mais, exigia respeito. Fora do seu controle o estômago se espreguiçava dentro dela.
Nessas circunstâncias parecia-lhe tentadora a ideia de poder saber o que deveria ficar em qual lugar. Testar a combinação mais confortável, ajustar quando não estivesse dando certo, compreender o que pertencia a ela e o que fora emprestado de outra pessoa. Separar em si os bens duráveis de não-duráveis, de capital e de consumo. ‘Qual era mesmo a diferença entre bens de capital e de consumo?’ Nas instituições públicas, os primeiros precisavam ser patrimoniados. Ficariam para sempre registrados que existiam. Como um CPF das coisas. Bastava jogar no computador e estaria lá. Tudo que um dia pertencera à instituição ficava gravado para sempre com plaquinhas de metal combinadas num imenso banco de dados.
Coisa e gente se igualavam, ao ganharem ambas a categoria de número. O mundo estava mesmo muito esquisito... Imaginava, daqui a uns anos o dia em que precisassem de algo emprestado. É capaz que dissessem: ‘Você sabe quem pegou o 23400/08?’, ouvindo de resposta. ‘Ah, deve ter sido o 324674899-2 lá do departamento 33.’ Sentiria saudade do nome das coisa: cadeira, tapete, tesoura. Rodo podia virar número. ‘Palavra feia é rodo’ – pensou.  Mas esse tempo ainda não chegara. Afinal, vassoura continuava sendo vassoura e “Seu Antônio da limpeza” ainda era chamado assim. Talvez ela estivesse vivendo um momento onde pessoas se igualavam a tarefas que faziam! Não queria mais pensar sobre isso.
Fechou o zíper e analisou seu trabalho. A bolsa tinha ficado como ela queria. Ao se virar para sair do quarto uma percepção infeliz: as coisas dentro dela haviam piorado. O movimento cessara. Fora tomada agora por um enorme vazio, como se seu estômago houvesse sido retirado dali. Um buraco mesmo, por onde ventava fazendo-a contorcer com o gelo. Por um momento se perguntou onde a banana que ela havia comido há algumas horas atrás iria parar. Será que já tinha dado tempo de ela percorrer todo o trajeto?
Tinha quase certeza de que dentro dela não havia mais nada. Estava oca. Pelo frio que podia sentir percorrendo as entranhas teve medo de o estômago ter se transformado em um buraco negro e sugasse para si tudo que havia em volta. Já estava imaginando como seria a própria implosão quando parou. Só podia estar ficando louca. Não era possível! Onde já se viu uma coisa dessas? Estômago buraco negro? Como ela, pesquisadora, moça estudada, conhecedora dos métodos era capaz de pensar uma coisa dessas? Precisava se concentrar em algo concreto.
Iria estudar. Ler artigos científicos poderia lhe fazer bem. Esquecer aquela bobagem de frio na barriga. Mas não precisou nem se dar ao trabalho de escolher um tema dentre os muitos assuntos para ler. Antes disso algo chamou sua atenção.
O estômago reaparecera. Havia mudado de lugar! Ou seria melhor dizer que se duplicara? Podia senti-lo no lugar certo, mas pelo visto mandara algo ir resolver as coisas por ele. O que quer que fosse a coisa, abrira caminho entre os outros órgãos e, numa tentativa de chamar sua atenção, instalara-se agora próximo ao peito. Esfregou o local, tentando melhorar o incômodo... Estava lhe causando uma dor enorme e começara a subir em direção à garganta.
Nesse momento ela se revoltou, não podia permitir uma coisa daquela! Tentou determinada fazê-lo voltar ao lugar de origem. Em vão. Embolara na garganta e se recusava a descer. Quanto mais ela se esforçava para fazê-lo voltar, mais ele a sufocava. Como um nó cada vez mais apertado continuava insistindo em subir. As coisas ficaram insuportáveis. Ela cedeu. Que saísse então! Pela boca, pelo nariz pelos olhos! Que a coisa derramasse tudo que tinha a oferecer!
E assim o fez.
Ao deixa-lo sair, mais calma, ela olhou bem fundo pra ele e quis conversar. Sentiu compaixão. Como não percebera que precisava era de atenção? Não era apenas um estômago, era o chamado de uma voz que vinha de dentro. E, acima de tudo, era uma voz que vinha de dentro dela. ‘O meu estômago!’ – constatou feliz.  – 'E de mais ninguém...'
Sorriu. Acabara de afirmar a própria essência, ao admitir que aquilo tudo lhe pertencia. Finalmente, assumiu para si mesma que ela existia.

domingo, 30 de setembro de 2012

Fluidificar-se

Ela nunca tinha olhado para a água daquela maneira: encantou-se!

Resolveu que iria guardar cada gotinha... Como caía em pingos era fácil, bastava posicionar os baldes e esperar que enchessem. Com o tempo, porém, a água começou a vir em grandes quantidades, contínua. Os baldes passaram a serem trocados com cada vez mais frequência e ela precisava ficar atenta a eles.

Foi então que teve uma ideia: começou a construir uma piscina no meio do cômodo. Assim poderia armazenar com mais facilidade, lhe pouparia tempo.

Um dia a piscina começou a lhe parecer pequena. Resolveu tampar as janelas do cômodo com cimento deixando a água contida pelas paredes. Para que ela mesma pudesse entrar e sair do local, fez uma pequena abertura próxima ao teto. Até que não houve mais jeito: abandonou o cômodo e deixou que a água o ocupasse por completo.

Certo dia as paredes racharam e no minuto seguinte foram completamente rompidas deixando escapar a água toda. Assistia à cena do lado de fora desesperada. Tentou conter algo com mãos: em vão... Como cachoeira a água fluía livre, fora do seu controle, arrastando-a!

Em pânico, sorvou quantos goles foi capaz, afundou e deixou-se levar.

Enfim, transbordara.



Depois de um dia inteiro de apostos, entretanto’s, pronomes relativos e terceiras pessoas do singular...

Encontrei no armário seus corações guardados!

Saboreei um por um com calma e eles me adoçaram trazendo parênteses, plurais, reticências e pretéritos. Mais que perfeitos!

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

MISSÃO

Sento na cadeira e olho a folha em branco. “Vamos lá. É só escrever.” Segundo o dicionário, 'dizer por escrito', 'encher de letras'. Preciso encher de letras o papel branco. Branco... Em branco. Minha mente está em branco, ou seja, falta de idéias. Segundo o dicionário ideia é 'uma representação que se forma no espírito'. Estranho, não entendo o significado. Será que quer dizer que não tenho espírito? Espírito é igual alma? Talvez eu tenha alma branca, por isso não sai nada. Acho que isso não vem ao caso. Tic Tac. Passou uma hora. Uma folha já foi pro lixo. Outra folha. Letras, artigos, conjunções, pronomes, verbos... Orações subordinadas substantivas. Nunca entendi pra quê tinha que saber classificá-las, não servem para nada agora. Tic Tac. Duas horas. Levanto. Melhor beber uma água. Água não, conhaque! Conhaque parece ser bom para ajudar a criar. Vinicius de Moraes bebia uísque. ‘Uísque é o cachorro engarrafado’ ele dizia. Não gosto de uísque. Nem de cachorros. Nem desse texto, pra dizer a verdade. Mais um pro lixo. E outro. E mais outro. O lixo no lixo. Ironia? Umas das definições do dicionário para lixo: ‘sobra’. Na verdade não sobra nada. Só falta. Criatividade, idéias, auto estima. Tic Tac. Já nem sei mais quantas horas se passaram. Também falta tempo. Os dicionários costumam ter, no mínimo, 17 definições diferentes para Tempo. Mas nada como ‘algo que sempre falta quando você precisa’. Se bem que isso pode ser muita coisa. Há grande chance de significar dinheiro se você for estudante universitário morando em outra cidade. Tempo poderia ser ‘aquilo que sempre que você precisa de muito tem pouco e quando quer pouco tem sobrando’. Confuso. Pensar nisso é perda de tempo. Vamos voltar ao foco. Tic Tac. Embola e joga fora. Tic Tac. Rasga e joga fora. Tic Tac. Rabisca e ... joga fora! Opa, acho que apareceu alguma coisa. 1, 2, 3, 4 ... 18 linhas! Já deu. Tchau.