quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Casa da praia, dezembro de 2015

Clarice,

estive meio louca esses dias, coisa de mulher. cheguei para o marido de uma amiga e disse a ele que me escutasse, que eu ia dar um conselho para o casamento deles ser feliz. pedi a ele que deixasse render os dramas dela, não fizesse pouco caso. sabe o que é, a mulher é sensacional, se posiciona, conversa, se mantém firme o ano inteiro... faz análise toda semana! mas, assim, às vezes a gente precisa, né? não dá pra se manter na linha o ano inteiro, sublimando, escrevendo, trabalhando... um draminha de dezembro, as mulheres merecem! falei para ele entender, não dizer que é TPM e fazer a parte dele direitinho no drama dela, coisa pouca, umas horinhas só e já dá pra ficar feliz, é até bonitinho. (risos)

ai, falei, Clarice! doida que eu estava. mas você não concorda? ele concordou sem reclamar, muito bem casada essa minha amiga, marido ótimo.

eu estou sem homem esses dias, final de ano ele trabalha tanto! comecei a tomar Frontal faz uma semana, mas o médico disse que é só um mês, ando tendo uns baratos legais por causa do remédio, não sei se com o tempo passa. Mas estou boa, acredite! sábado fez um solzinho, cheguei da praia cansada resolvi assistir “Vicky, Cristina, Barcelona”, as histéricas do Wooddy Allen são incríveis! apesar de eu preferir Almódovar.

Sabe que aqui no Brasil andam falando de você e Guimarães Rosa? escritores do modernismo! água, sertão e outras coisas mais! cá, entre nós, vocês já vem se entendendo antes desses teóricos que eu sei. falam muito sobre as paisagens no texto dele e não percebem que o que você escreve também é paisagem. Mas eu sei de gente que vê, não se preocupe, deixa como segredo de mulher, por enquanto.

um abraço amiga,
escreva breve,
Penélope.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

o que resta

Desenho: Danielle Souza
o que resta é o corpo, esse inevitável. e com ele a invenção.
um corpo que escreve. que sente, que pulsa, que vive.
um corpo que tropeçou naquilo que um dia fora a possibilidade única de si.
maçã que falta. maçã mordida. maçã marcada de desejo. maçã com semente, possibilidade de fazer nascer. então nasci mulher e não sabia dizer bem.

mas ia dizendo. que seja assim, sendo.
bem dito o fruto do vosso ventre mulher... bem dito o desejo que me fez nascer...


sábado, 7 de novembro de 2015

Vaca amarela


Nem mais um pio! a mãe dizia. Lá no fundo do quintal, o passarinho já de olhos bem abertos queria acordar para fazer a menina feliz. 

O silêncio tinha um rastro amarelo e ocupava este lado da casa. Sentava sem medo onde quer que fosse e ficava observando a menina. A boca fechada para não entrar mosquito, não era uma escolha engolir uma a uma as palavras que queriam dobrar a língua. Passou a inventar os caminhos por onde sairiam silenciosas, sem que ninguém percebesse.

“Não! Não nasci para engolir a bosta de ninguém!” queria falar primeiro, gritando.

Mas antes que pudesse, o gato comeu a língua dela, bebeu todo o leite e fez a vaca pular da janela.


(do te-ser memória_2)

sábado, 24 de outubro de 2015

despertar

     os começos sempre me escapam
(e talvez por isso eu insista em escrever)
sei que eu corri, mas não fiz nada para impedir. apenas abri os olhos e esperei, como repetiria tantas vezes nos anos seguintes... talvez eu quisesse que acontecesse ou simplesmente não acreditasse que fosse possível. eu esperei olhando. a torneira aberta e ele insistindo. só na terceira tentativa aconteceu. ali o tempo parou. naquele relógio azul embaixo d'água. a água passa e o tempo fica. não havia mãe capaz de consertar o tempo. de fazer o tempo voltar a correr.

era uma vez, um presente.

ouvindo: Depois de ter você - Adriana Calcanhotto


(do te-ser memória_1)

domingo, 16 de agosto de 2015

um texto que me descubra


eu querida de mim, querendo
eu sentida assim, sendo
eu, minha, sentindo isso
isso assim, de dentro, desse jeito
do meu jeito
desfio a memória
e escrevo
buscando sentido
buscando e sentindo
eu que só sei porque sinto
eu que sinto que não sei
estou nua por responsabilidade própria.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

visita

você tem vindo à noite,
quando é impossível
eu me convencer que não
está aqui
o inconsciente atravessado
na busca, a mesma que digo não querer
mas acordo do sonho querendo
quase sem culpa.

a consciência me contém:
"te segura, mulher!"

engano essa saudade sem educação
escrevo, finjo, dissimulo
a espera não existe 
se for pra ser,
que venha sem avisar
e chame quando estiver à porta.

Para ouvir: Amor, se acalme - Gal Costa

terça-feira, 14 de julho de 2015

da ordem

fale cá, ao pé do ouvido, sussurrando...
fale caminhando os dedos pelo meu corpo...
fale cada olhar que sabe parar em nós...
fale caindo em si, em mim, enlace...
fale casualmente da volta,
mas fique, se for o seu desejo.
acalma tua em língua em minha boca
que ofereço o meu silêncio
e inventamos o encontro.

Para ouvir: Um tom - Caetano Veloso

sábado, 11 de julho de 2015

correspondência

o que quer que possa ser,
peço que venha
sem palavras
como um livro,
ou uma fotografia
eu espero com medo
mesmo com boas intenções
é que bom e ruim nunca foram
opostos
em se tratando da gente,
o que fode tudo é a intensidade.
podia chegar o vinil novo da Gal
que talvez teríamos
passado as tardes ouvindo
e fazendo promessas do tempo
em que seríamos mulheres...
não aconteceu. não. nunca.
que me surpreenda simplesmente
por não ter sido
dessa vez
quero apenas algo que não signifique

Para ouvir: Sem medo nem esperança - Gal Costa

segunda-feira, 8 de junho de 2015

sobre o sopro, (h)a língua

um mês inteiro num único dia, hoje resolvi antecipar junho e reverto a espera com o que sei ter e estar. Admito que inventei. Há meses soltei o fio do desejo, não houve quem apanhasse a outra ponta, eu insisti e não vou me culpar por querer. Agora, as mãos entregues ao controle do barco, navego contra a correnteza acompanhada de algo que não me abandona mas silencia em perplexidade e me olha desconhecendo o caminho. Eu labirinto – passeio despretensioso – com uma escrita que sabe olhar e em respeito à mulher que não merece sofrer irei seguir, com cuidado. Me foi, me é, difícil abandonar a rota e eu resisto. existo. e revolto. e volto. volto. volto. Eu juro, é só chamar. Não! Encho os pulmões de ar sem fechar os olhos e não enxergo mais a margem, está feito o caminho para a vertigem, esse deslumbramento. Preparada para saltar nua e mergulhar em águas profundas não sinto medo e se você sentir peço que se arrisque ou que vá ler em outro lugar pois não tenho intenção de assustar ninguém que não mereça. Em instantes, num descuido o tombo será dado e essas palavras estarão derramadas ao chão, é provável que miseráveis, tal como a mãe primeira de Eros, e carentes em si mesmas, em honra materna, irão de ficar e permanecer. Eis aqui o que me resta, Que haja amor! – estou dizendo... E assim se fez texto, se fez palavra, se fez vírgula por sobre um corpo a(o )mar que não cansou de existir.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

eu e a escrita

Se for possível, que essa escrita deslize pelo ouvido e me faça cócegas. Hoje é preciso certa delicadeza... Uma morte anunciada ronda o texto, mas me sento com ela e digo: vou escrever sem doer. Então abro bem o buraco e espero ansiosa.

À mão da mãe pertencia a volta. O balanço quebrou, o irmão dormiu, a mesa está posta e é chegada a hora... Não quero! mas quero também. sim e não sei. Nada é sempre bom. Certo é aquilo que diz: não escreva... é que o certo nunca se deu para escrita, disso eu já sabia. Veja como leão é um bicho muito grande e tem só quatro letras! A bruxa caiu da cama e eu também, aproveito e invento uma história. “Era uma vez dois irmãos órfãos de pai e mãe...” começo uma lista: Bruno e Bruna. Paulo e Paula. Daniel e Daniela. Pedro e Pedra! O feminino virou coisa... O mundo era muito e não se escrevia. A mão virada para trás segura o lápis e caminha em frente. Braço torto, escrita torta. Do fio da linha à borda da folha. Para atravessar é preciso perder. A escrita é dessa nudez, do corpo que dança. Arrancaram minhas roupas e não tive escolha. 

Então que seja assim, e que passe pelo corpo... é aqui o começo, onde a escrita atravessa. Se há um verbo que me rasga, eu costuro na falta o tecido da letra, ponto a ponto, linha a linha, furo a furo. necessidade lembrança ser sede corpo casa desejo só e tanto. Do medo de mar ao medo de amar há um silêncio a ser oferecido, não me esquivo.

Sou mulher de palavra,

quinta-feira, 7 de maio de 2015

sexta-feira, 3 de abril de 2015

da fome

A isso que me ocupa o estômago
e não sei de onde vem
chamarei ‘vontade de viver’.
da coisa minha dou o nome que eu quiser,
escolho um que saiba andar para frente.
Nem parte, nem toda...
algo assim que seja meu,
que seja eu,
que sê... já!

urgente e necessária
,


quarta-feira, 1 de abril de 2015

Da insuficiência

palavra quase sempre havia
quase sempre a via
quase a ver...
haver-se em mim
palavra
sempre se havendo
                                    falta
                     sempre
       palavra

sexta-feira, 13 de março de 2015

Olivetti, 46


só escrevia manca
assim meio torta
meio capenga...
ia indo e o tempo insistia
tic tac tac tac tac tac
batia sempre a mesma tecla!

resolveu trocar o papel,
virou máquina de costura

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

convite

em silêncio eu diria:
quero transar com você

no tapete, nus
- saliva poros pele -
eu subiria pelo seu corpo
e chamava
te quero homem
eu quero...

(mas)

agora me desnudo de mulher e escrevo
descoberta
ainda é carnaval
fantasio
sozinha
faço o amor acontecer




Para ouvir: Cinema Americano - Thais Gulin

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

medo de (a)mar II


um susto da memória reinventado em grão, imagem e canção
Meu(.) Teu. o mar de ninguém. e a diferença nossa.


"Eu vi as ondas brincando de pega-pega
Levar as águas do riacho cristalino
Eu vi menino vim brincar no mar
Oh mar vem lavar pé de menino

As gaivotas vão fazendo suas rondas
O sol levanta vento leste me incendeia
No chão da praia vou guardar a minha raia
E construir o seu castelo de areia

Menino vem brincar no mar
Oh mar vem lavar pé de menino..."


Para ouvir: O menino e o mar por Rubinho do Vale

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

medo de (a)mar I



a primeira vez foi azul... imenso e inevitável. assim era o mar, em janeiro de 1994. assim era o mundo a partir daquele instante. escancarado a me pertencer como parte, fragmento - nunca toda. E eu ali, alguém à margem, alguém na espera, a quem o mar ia e vinha independente da minha vontade. tinha 3 anos e medo. medo de não ter espaço para me caber no tanto que era o mar. e o desejo inesgotável de existir para além da margem...

é janeiro de 2015 e sou eu. assim, na esperança que não mais espera, mas confia e segue, mergulho com gosto - de onda e lágrima. habito na minha presença o vazio entre céu e mar, o horizonte impossível. aqui, na imensidão do entre - é um convite -, invento o encontro, o conto, o canto.