quarta-feira, 17 de outubro de 2012

EIXO

Quando criança gostava de entrar no banho, fechar os olhos e ficar girando em baixo do chuveiro...

Rodava, rodava, rodava... Até me esquecer de onde estava.

Então parava e tentava adivinhar qual era a minha posição. Com a água quente caindo sobre a cabeça, expandia os sentidos em busca de uma revelação... Às vezes abria despistadamente os olhos só um pouquinho, enganando a mim mesma antes de mentalizar a resposta, sempre certa.

Agora, anos depois, percebo que o mundo gira mais rápido que as brincadeiras de chuveiro... Hoje, maior e com os olhos abertos, observo em volta e não reconheço nada. Pareço ter me perdido após deixar-me levar por tanto tempo. Assustada, tudo que eu queria era poder me abaixar perto daquela criança e sussurrar no seu ouvido:

“Abre olho pra mim e me conta: onde eu vim parar?”


Para ouvir: Roda Viva-Chico Buarque e Fernanda Porto

domingo, 14 de outubro de 2012


Ela gostava de grandes quantidades, era uma pessoa exclamativa. E nunca se contentava com uma exclamação só, tinham que ser várias. Isso mostrava a importância que ela dava a afirmação. Impositiva não era. Nem mandona, caso possa parecer. Acho que apenas chamava atenção aos fatos que deviam ser vividos intensamente. Não havia essa de fingir que não via. O mundo estava ali, convidativo!!!!! Ressaltado!!!!!!!!

O mesmo fazia com as interrogações. Era de uma curiosidade crescente, infinita. Impossível contar quantas ela usava, eu me embolava e me perdia. Por quê isso?????? Ela realmente queria uma resposta????? Às vezes não. Mas mostrava que estava ali, sempre atenta, interessada, disposta a escutar.

Reticências quase nunca usava. Reticências é uma pontuação com hora pra acabar: 3 pontos. Se forem quatro ou dois, não importa, terão o mesmo poder de significar nada. Parecia muita metodologia pra uma vida que tentava se desfazer de regras. É que ela não entendia que a liberdade está nas inúmeras maneiras de se percorrer os espaços entre os pontos para cada vez costurar uma história diferente. O infinito das reticências se faz nas entrelinhas...



Em uma certa manhã de abril, eu falei das suas exclamações... E elas me fizeram perceber minhas reticências!!!!! Passamos longe das saliências de um possível “entre aspas” comum. Rompemos parênteses, para nos abrirmos para o mundo.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

E(n/s)tranha


Começou sem que ela percebesse. Quando deu por si estava remexendo na cadeira como se procurasse uma posição menos incômoda. Pronto, estava feito. Bastava tomar consciência de que havia algo de estranho e aquilo não lhe deixaria em paz. Era sempre assim, contra a sua vontade aquela coisa surgia na região central do corpo. Não sabia bem o que era, parecia algo que vinha do estômago. Talvez fosse inclusive o próprio estômago! Resolveu levantar para ver se passava, andar pela casa, distrair-se.
Foi arrumar sua bolsa, mas ao chegar ao quarto lembrou-se de que já estava arrumada. Não se importou: retirou o que havia e dispôs tudo cuidadosamente lá dentro outra vez. Era uma bolsa retangular, grande, porém estreita, de alça pequena, daquelas que se carrega de um ombro só e não dá para cruzar na frente do corpo.
Com a bolsa em cima da cama colocou os cadernos encostados na parte maior. Em seguida acomodou em uma das laterais a bolsinha de lápis a e na outra caixa dos óculos. Acrescentou um cachecol no fundo e por cima, a carteira e uma maçã que comeria no lanche. Era muito importante para ela essa disposição. Na hora de carregar, a parte onde estava encostado o caderno ficaria para fora e a outra extremidade em contato com o corpo. O caderno garantia o design perfeito. Acomodado ao pano retangular formava uma superfície lisa e plana para quem a visse. A outra extremidade acabava ajustando-se ao corpo de maneira que a bolsa ficava em contato com ela, mais próxima. Desse jeito, era como se a bolsa fizesse parte dela, ‘como se fosse uma extensão do meu próprio corpo...’ – constatou contente, para logo em seguida desanimar de novo. Quisera ela ter domínio de si como tinha dos objetos da bolsa...
Seu estômago parecia ter aproveitado seu momento de distração para ganhar vida própria. E, ao contrário dos objetos guardados e ajeitados cuidadosamente, ela não sabia o que fazer com ele. Parecia se esforçar por ganhar mais espaço, como se a sua localização, logo abaixo do diafragma, espremido entre o esôfago e o duodeno não bastasse para ele. Queria mais, exigia respeito. Fora do seu controle o estômago se espreguiçava dentro dela.
Nessas circunstâncias parecia-lhe tentadora a ideia de poder saber o que deveria ficar em qual lugar. Testar a combinação mais confortável, ajustar quando não estivesse dando certo, compreender o que pertencia a ela e o que fora emprestado de outra pessoa. Separar em si os bens duráveis de não-duráveis, de capital e de consumo. ‘Qual era mesmo a diferença entre bens de capital e de consumo?’ Nas instituições públicas, os primeiros precisavam ser patrimoniados. Ficariam para sempre registrados que existiam. Como um CPF das coisas. Bastava jogar no computador e estaria lá. Tudo que um dia pertencera à instituição ficava gravado para sempre com plaquinhas de metal combinadas num imenso banco de dados.
Coisa e gente se igualavam, ao ganharem ambas a categoria de número. O mundo estava mesmo muito esquisito... Imaginava, daqui a uns anos o dia em que precisassem de algo emprestado. É capaz que dissessem: ‘Você sabe quem pegou o 23400/08?’, ouvindo de resposta. ‘Ah, deve ter sido o 324674899-2 lá do departamento 33.’ Sentiria saudade do nome das coisa: cadeira, tapete, tesoura. Rodo podia virar número. ‘Palavra feia é rodo’ – pensou.  Mas esse tempo ainda não chegara. Afinal, vassoura continuava sendo vassoura e “Seu Antônio da limpeza” ainda era chamado assim. Talvez ela estivesse vivendo um momento onde pessoas se igualavam a tarefas que faziam! Não queria mais pensar sobre isso.
Fechou o zíper e analisou seu trabalho. A bolsa tinha ficado como ela queria. Ao se virar para sair do quarto uma percepção infeliz: as coisas dentro dela haviam piorado. O movimento cessara. Fora tomada agora por um enorme vazio, como se seu estômago houvesse sido retirado dali. Um buraco mesmo, por onde ventava fazendo-a contorcer com o gelo. Por um momento se perguntou onde a banana que ela havia comido há algumas horas atrás iria parar. Será que já tinha dado tempo de ela percorrer todo o trajeto?
Tinha quase certeza de que dentro dela não havia mais nada. Estava oca. Pelo frio que podia sentir percorrendo as entranhas teve medo de o estômago ter se transformado em um buraco negro e sugasse para si tudo que havia em volta. Já estava imaginando como seria a própria implosão quando parou. Só podia estar ficando louca. Não era possível! Onde já se viu uma coisa dessas? Estômago buraco negro? Como ela, pesquisadora, moça estudada, conhecedora dos métodos era capaz de pensar uma coisa dessas? Precisava se concentrar em algo concreto.
Iria estudar. Ler artigos científicos poderia lhe fazer bem. Esquecer aquela bobagem de frio na barriga. Mas não precisou nem se dar ao trabalho de escolher um tema dentre os muitos assuntos para ler. Antes disso algo chamou sua atenção.
O estômago reaparecera. Havia mudado de lugar! Ou seria melhor dizer que se duplicara? Podia senti-lo no lugar certo, mas pelo visto mandara algo ir resolver as coisas por ele. O que quer que fosse a coisa, abrira caminho entre os outros órgãos e, numa tentativa de chamar sua atenção, instalara-se agora próximo ao peito. Esfregou o local, tentando melhorar o incômodo... Estava lhe causando uma dor enorme e começara a subir em direção à garganta.
Nesse momento ela se revoltou, não podia permitir uma coisa daquela! Tentou determinada fazê-lo voltar ao lugar de origem. Em vão. Embolara na garganta e se recusava a descer. Quanto mais ela se esforçava para fazê-lo voltar, mais ele a sufocava. Como um nó cada vez mais apertado continuava insistindo em subir. As coisas ficaram insuportáveis. Ela cedeu. Que saísse então! Pela boca, pelo nariz pelos olhos! Que a coisa derramasse tudo que tinha a oferecer!
E assim o fez.
Ao deixa-lo sair, mais calma, ela olhou bem fundo pra ele e quis conversar. Sentiu compaixão. Como não percebera que precisava era de atenção? Não era apenas um estômago, era o chamado de uma voz que vinha de dentro. E, acima de tudo, era uma voz que vinha de dentro dela. ‘O meu estômago!’ – constatou feliz.  – 'E de mais ninguém...'
Sorriu. Acabara de afirmar a própria essência, ao admitir que aquilo tudo lhe pertencia. Finalmente, assumiu para si mesma que ela existia.