sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

(pretexto/pré-texto) DORA


Ela apareceu um pouco ressabiada, num dia à noite quando eu estava no meu quarto. Trazia uma fita amarrada no pescoço com uma flor rosa enorme de enfeite que logo me transmitiu simpatia, parecia querer conversar comigo. Seu nome era Dora e ela era uma lagartixa.

Lagartixa albina, dessas que preferem ficar dentro de casa vivendo nos cômodos já tão conhecidos... As manchinhas marrons que ela exibia na pele macilenta, lembrava as mãos de algumas avós que encontrei por aí. É que Dora estava velhinha... Não pensem mal do meu exemplo, eu realmente gosto das mãos das avós. E eu gostava das machinhas da Dora, apesar de não saber se ela mesma gostava. Desconheço quão dura pode ser a velhice de uma lagartixa...

Ela veio caminhando com um olhar cansado e decidido que me assustou. Enquanto se aproximava, ficando mais nítida, eu compreendi seus desejos e temi profundamente a visita aquela hora da noite...

O fato é que Dora esperava que eu escrevesse sua história. E ela não estava disposta a explicar muita coisa. No seu posto de lagartixa vivida e experiente ela sabia que havia encontrado uma pessoa que não precisaria de muito para criar o que ela queria. Não importava a ela que eu soubesse ao certo seu local de nascimento ou se ela era boa em caçar mosquitos. Era perspicaz o bastante para saber que tudo que eu precisava estava ali: representado no contorno escuro de uma pele que fora muitas vezes amputada e regenerada no mesmo lugar e servia hoje de apoio para mais uma nova cauda.

Dora era uma lagartixa que passara a vida inteira tentando cortar o próprio rabo!...

Se você, leitor, for um pouco esperto pode perceber que o que a Dora queria não era uma biografia. Ela havia me trazido uma metáfora. E ali ao fim da vida, a oferecia para que eu transformasse num grande ato final!

Encarando aqueles olhos tristes, quase suplicantes, eu queria, sinceramente, aceitar aquela metáfora e escrever uma história que falasse à Dora que o rabo faz parte dela e eu o acho bonito. Que dissesse que ela não é uma lagartixa pior, por ser igual a todas as outras lagartixas que tem rabo. E que ela também não é uma lagartixa pior por não ter compreendido a essência da própria cauda e ter passado a vida negando aquela parte de si. Que ela não tem que se preocupar em ser pior ou ser melhor pra ninguém. Eu queria poder dizer à Dora que ela não precisa se culpar por ter vivido em busca de uma mutilação e que existem outras maneiras de enxergar suas atitudes. Que o importante é ela ter sido e que o não-ser não existe.

Eu queria dizer tudo isso e muito mais. Mas não sei se eu consigo... Lá no fundo eu achei a história da Dora muito triste e não me sentia a pessoa indicada para transformar aquilo em algo bonito, como ela merecia. Preciso admitir que meu primeiro desejo foi poder ser uma cirurgiã especialista em rabos de lagartixas, estudiosa aplicada e conhecedora de novas técnicas. E com todo o meu entendimento eu arremataria os últimos vestígios caudais numa cirurgia perfeita! E a Dora morreria feliz, acreditando ter sido sempre uma lagartixa sem rabo.