sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

AINDA II

Meu olhar pára nas suas mãos e fica. Um livro surrado de capa vermelha, você emoldurada entre a parede e a cômoda, seus lábios distantes e embaçados se movendo em versos mudos e, talvez, escolhidos.

São 2h da manhã e eu folheio mais de 400 páginas tentando ouvir sua voz que ficou suspensa em algum lugar que não me lembro. Falha na memória? Não... Memória pedinte, viva, chamando pra ser inventada. Essa memória é um “ainda”. Advérbio de tempo, modificando as circunstâncias da (não)ação. Querer é verbo? O querer se modifica sozinho, atropela vírgulas, pontos, parágrafos, mas com o ainda aceita nossas reticências... ainda é meu permanecer no tempo. O ainda é uma alternativa para o querer inquieto... 

Volto ao mistério da memória. Continuo folheando até a reinvenção dos seus versos mudos, ocupo o lugar do silêncio e escolho(será?...), página 106:

“cabeceira

Intratável.
Não quero mais pôr poemas no papel
nem dar a conhecer minha ternura.
Faço ar de dura,
muito sóbria e dura,
não pergunto
“da sombra daquele beijo
que farei?”
É inútil
ficar à escuta
ou manobrar a lupa
da adivinhação.
Dito isto
o livro de cabeceira cai no chão.
Tua mão que desliza distraidamente?
sobre a minha mão”
(Ana Cristina César)

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

AINDA I

Em meio a um sarau involuntário no café
(aliás, pode-se confiar em café?)
escapa um cílios transgressor:
"É verdade, a falta não é sua mesmo, já te disse. Mas a saudade, ah!, a saudade..."






Para ouvir: como disse Xico Sá, uma música qualquer.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Daquilo que não se nomeia I

Nota da autora: Eu Te Amo, Maria Lúcia! Confie em mim... (11/12/2013)

...
        Nunca havia estado ali antes, ajeitou o cabelo atrás das orelhas e conferindo as horas no celular caminhou até as portas de entrada. Olhou rapidamente lá para dentro: "a princípio, nenhum conhecido..." Não quis entrar, ao invés disso, se pôs a observar a rua como se estivesse absolutamente confortável com tudo aquilo. Conferiu as horas mais uma vez.
Neste momento ela esta prestes a ficar com medo de estar sendo observada! Vamos aproveitar esse incômodo, para conhecer a nossa personagem: parada em pé na calçada, aparentando estar muito atenta à árvore de flores amarelas à sua direita, encontra-se Maria Lúcia. Ela me reprovaria se ouvisse dizer isso, não lhe agradava muito o nome. Por mais que gostasse da avó, gostaria ter herdado outra coisa dela que não a alcunha. Por exemplo sua habilidade em dobrar coisas. Me refiro aqui a todo tipo de coisas, desde camisetas, passando por lençóis de elásticos e também origamis. Dona Maria Lúcia era realmente muito boa nisso! A neta, coitada, da avó ficou só com o nome mesmo.
         Preferia ser chamada de Malu. De onde viria tanta implicância? Maria Lúcia parecia ser um nome perfeito para uma pacata senhora de cabelos brancos que era boa em dobrar coisas. Esse era o problema! A Maria Lúcia da nossa história não é a avó, mas a neta que está longe de ter cabelos brancos. Mas os velhos um dia foram novos - poderíamos lhe dizer... "É verdade. Ainda assim, seria o nome de uma criancinha em alguma casa de décadas atrás."
Essa criancinha definitivamente não foi Malu! Malu era contemporânea, versátil... Teve Super Nintendo, assistiu Rei Leão, cantou Mamonas Assassinas sem entender a letra, colecionou palitos de Frutilli. E então cresceu, jogou 'verdade ou consequência', saiu no inverno sem blusa de frio, se deu o direito de comer a sobremesa antes do almoço, se cadastrou nas redes sociais da moda, tentou vestibular, passou, começou a faculdade...
E especificamente hoje, encontra-se nessa história parada de pé na calçada com o celular na mão, desejando muito poder ser Malu e se sentindo cada vez mais, Maria Lúcia...
Já estava ficando desconfortável. "O que pensariam dela, parada de pé ali sozinha?" Ora, poderiam começar a reparar, falar do seu cabelo, suas roupas, sua obsessão em olhar as horas no celular... "Por que não conseguia deixar o aparelho quieto?"
Resolveu tomar uma atitude! Ajeitou os óculos sobre o nariz e passou pela porta como se fizesse aquilo todos os dias. Olhou em volta displicentemente e descobriu um painel grande com cartazes, lendo anúncios ficaria ocupada.
Leu alguns informes que não entendeu, viu cartazes de pessoas vendendo um fogão seminovo, procurando cachorrinhos perdidos, doando gatos. Alguém anunciava: 'uma barraca de acampamento para 2 pessoas + colchão inflável de casal: vendo ou troco por carrinho de bebê e berço – Aberto a negociações!' Ela não conseguiu conter uma risada. Silenciosa, mas o suficiente para esboçar um sorriso. "Droga!" Só agora percebeu que ainda não tinha sorrido desde que chegara lá. "Será que estava com o rosto tenso?" Talvez fosse pior, poderia estar com a testa levemente franzida, com aquela expressão meio brava, fechada... "E esses braços cruzados?Estaria assim há muito tempo?"
Uma vez ouviu dizer que braços cruzados eram uma espécie de proteção, mostrava que a pessoa não estava aberta às outras, coisas de expressão corporal. Ela até quis ler sobre o assunto, mas mudou de ideia. Teve medo de que ficasse obcecada por analisar o corpo e sua linguagem... Não só o corpo dos outros, mas o dela próprio. Ficaria enclausurada entre os pensamentos e seus reflexos físicos. "Pior! E se o corpo expressasse na verdade o que ela sentia e que definitivamente não queria pensar?"
Fomos cruéis com ela agora... Talvez por isso tenha despertado dos pensamentos e reparado que seu olhar estava perdido diretamente na direção de um cartaz anunciando uma espécie de festa, com cantores que ela desconhecia. Tratou de olhar para outro lado, não queria parecer interessada naquele tipo de evento!
             Sentou num banco vazio e pegar o celular. Conferiu email e redes sociais, nada demais. Guardando o aparelho, reparou que uma pessoa à sua frente lia um livro. Adorava descobrir o que estavam lendo perto dela. Observava a maneira como as pessoas passavam as páginas, se usavam marcador para acompanhar as linhas, como mudavam os dedos de lugar durante a leitura. Achava um momento tão bonito ler um livro... Como ela gostava do conforto da leitura em lugares públicos! Sentiu vontade de ter um livro com ela. "Mas que livro poderia ter trazido? Livros podiam dizer muito sobre o leitor!"
Aliás, todas essas preocupações pretendiam criar que tipo de pessoa? Qual imagem ela gostaria de passar?

QUEM É VOCÊ?! - eu pergunto

            Mas minha pergunta só foi ouvida por um milésimo de segundo. E insistir nela poderia sacrificar de vez a personagem. Digamos que durou tempo suficiente para ela entender que precisava mudar de assunto, ficar tranquila, mais leve...
"Para quê tantas preocupações, afinal? Era alguém esperando, como tantos outros. Que mistério há nisso"
Pelo fluxo de pessoas em pé percebeu que estava na hora. Levantou-se satisfeita, sem sequer olhar o celular. "Tudo estava resolvido, talvez ela realmente não precisasse ser ninguém ali!" E naquele momento, caminhando para a sala, ser ninguém lhe pareceu ótimo, incrível! Algo muito melhor que ser...

               - Seu nome, por favor?
- Hã?
- Seu nome... – insistiu a mulher parada à porta levantando uma pilha de crachás.
- Maria Lúcia.
- Desculpe, pode falar um pouco mais alto?
- Maria Lúcia – repetiu
- Ah, sim. Maria, Maria, Maria... Achei! Ma-ri-a Lú-ci-a! – leu, sorrindo – Prenda em um lugar visível e não tire até terminar.
(escrito inicialmente em julho de 2012)