quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Sobre vôos presentes para primaveras simbólicas ou Era outra vez setembro


E você chorou como choram todas as pessoas que sentem o coração mudar de lugar. Eu vejo seu olhar perdido nela, estacionado, fotografando o tempo... Ela caminha entre os móveis e fala, firme, o inevitável... Que “as coisas são assim mesmo”, “a gente não controla isso”, ela “não queria”, “se pudesse escolher”, “MAS.” (   )... Conjunções adversativas, contrastando os lados do discurso. Dividindo e criando fronteiras entre opostos que não se separam e formam sentido juntos, em uma mesma direção. Semelhante a vocês... Em seguida ela te pede desculpas.  Talvez esteja se sentindo culpada, talvez não, é confuso... Mas pede. “Realmente não queria te ver assim”, “não sei o que fazer”, “quero te ver bem”, “MAS.” (   )... E recomeça, tentando evitar que tudo se escape, buscando algo tátil. Como uma pipa que de repente se solta das mãos, vocês correm atrás do carretel e tentam alcançá-lo...  “Você sabe, não é definitivo”, “a gente nunca sabe o dia de amanhã”, “não significa que acabou pra sempre”, “MAS.” (   )... E lá estão vocês tentando amarrar o carretel em algum lugar (onde?) e seguir adiante (para onde?). Ela olha para você. E por fim não importa muito o que ela diz. Você sabe, você conhece. E sente assim mesmo. Como todas nós. Porque o conhecimento não basta em si, é preciso sentir para ter sentido. E dói... Você pensa nas vezes em que ela esteve nua no seu quarto. Lembrando de quando ela chorava sem dar voltas em torno dos móveis, apertada em seus braços... As mãos! Que agora brincam inconscientemente com objetos aleatórios em cima da sua mesa. Aquelas mãos em fuga, em busca. Mãos que desenharam sobre seu corpo tanto tempo... Você abaixa a cabeça, numa tentativa de derramar pra fora a memória. E ao erguê-la, você vê o espelho... Um dia seus olhos fotografaram por ali também. Vocês duas nuas e ela em cima de você, o corpo quente, contínuo, de repente você o percebe, refletindo os momentos... Sorri. Então se vira, afasta o cabelo dela da testa com as mãos, ela ergue os olhos e vocês se veem, perpetuando o encanto. O espelho cúmplice do gozo. Quando duas pessoas se amam o sexo é uma intimidade a mais... Compartilhada como foram suas metáforas, suas conversas, seus sorrisos... Ela parou de falar. Está triste. Mas se mantém firme. É preciso. As duas sabem disso. Ela vai embora e você solta o soluço entalado na garganta, perde o fôlego... E nesse instante seu celular já está tocando. Uma amiga, avisando que vai ir dormir com você. As amizades são as mesmas... E elas vão ouvir as histórias das duas e vão consolá-las. Os dias se passam, você sente saudades, quer correr e contar suas coisas pra ela, mas têm que esperar. “Tem que dar tempo ao tempo”, “o afastamento é necessário no início”, “depois vocês podem ser amigas, agora não” (   )... Escreve. Ela teme que você a chame de fria. Mas você não consegue... Quantas vezes viu aquele coração pulsar quase externo ao corpo, compartilhando compassos? Escreve. Amava nela, sobretudo o mistério... Você, tão boa em decifrar, enlaçada na possibilidade de uma descoberta que se refaz... Escreve. E recorda de quando ficava sentada com o notebook no colo envolta em seus textos acadêmicos e levantava o olhar furtivo na direção dela que soltava histórias riscadas à mão naquele diário de bordo... O tempo vai passando e você hesita em desaparecer com os vestígios dela da sua casa. Escreve. O último vidro de Nescafé fica na estante, você não terá coragem de jogá-lo fora. Ele incorpora aquelas partes da casa que existiam junto com ela... Quem sabe mexendo do lado de fora não se organiza o lado de dentro? Por fim vai ir acumulando tudo num fundo de gaveta ou guarda-roupa para escolher o momento de inquietar a memória. Escreve. E se depara com lembranças que não se guardam para mais tarde. Como aquela cadela vira-lata que você adotou e ela insistiu em colocar o nome de uma escritora, ou de uma personagem de uma escritora. Macabéa, foi batizada! Meio contra a sua vontade, mas com a promessa de que ainda teriam uma Virgínia e uma Felipa. Macabéa agora é um permanecer no tempo. A memória pulsante, marcada. Ah, Clarice e suas 3 pernas!... A caneta ocupa o lugar do terceiro apoio e você caminha. Escreve.

O tempo... Ele passa. E o carretel permanece amarrado. De vez em quando você o encontra sem querer, outras vezes vai onde sabe que ele te espera... E observa a pipa num encontro de azuis. Ela também visita o carretel... Existindo caminhos até ele, permanece a promessa de que um dia possam estar lá ao mesmo tempo

(   )... (  .).. ( ..). (...)


[o vento sopra mais grãos na primavera]


Para ouvir: Tempo de Pipa - Cícero