Ela apareceu um pouco
ressabiada, num dia à noite quando eu estava no meu quarto. Trazia uma fita
amarrada no pescoço com uma flor rosa enorme de enfeite que logo me transmitiu
simpatia, parecia querer conversar comigo. Seu nome era Dora e ela era uma
lagartixa.
Lagartixa albina, dessas
que preferem ficar dentro de casa vivendo nos cômodos já tão conhecidos... As
manchinhas marrons que ela exibia na pele macilenta, lembrava as mãos de
algumas avós que encontrei por aí. É que Dora estava velhinha... Não pensem mal
do meu exemplo, eu realmente gosto das mãos das avós. E eu gostava das machinhas da
Dora, apesar de não saber se ela mesma gostava. Desconheço quão dura pode ser a
velhice de uma lagartixa...
Ela veio caminhando com um
olhar cansado e decidido que me assustou. Enquanto se aproximava, ficando
mais nítida, eu compreendi seus desejos e temi profundamente a visita aquela hora da noite...
O fato é que Dora esperava
que eu escrevesse sua história. E ela não estava disposta a explicar muita
coisa. No seu posto de lagartixa vivida e experiente ela sabia que havia
encontrado uma pessoa que não precisaria de muito para criar o que ela queria. Não
importava a ela que eu soubesse ao certo seu local de nascimento ou se ela era boa
em caçar mosquitos. Era perspicaz o bastante para saber que tudo que eu
precisava estava ali: representado no contorno escuro de uma pele que fora
muitas vezes amputada e regenerada no mesmo lugar e servia hoje de apoio para
mais uma nova cauda.
Dora
era uma lagartixa que passara a vida inteira tentando cortar o próprio rabo!...
Se você, leitor, for um
pouco esperto pode perceber que o que a Dora queria não era uma
biografia. Ela havia me trazido uma metáfora. E ali ao fim da vida, a oferecia para
que eu transformasse num grande ato final!
Encarando aqueles olhos tristes,
quase suplicantes, eu queria, sinceramente, aceitar aquela metáfora e escrever
uma história que falasse à Dora que o rabo faz parte dela e eu o acho bonito.
Que dissesse que ela não é uma lagartixa pior, por ser igual a todas as outras
lagartixas que tem rabo. E que ela também não é uma lagartixa pior por não ter
compreendido a essência da própria cauda e ter passado a vida negando aquela
parte de si. Que ela não tem que se preocupar em ser pior ou ser melhor pra ninguém. Eu queria poder dizer à Dora que ela não precisa se culpar por ter vivido em busca de uma mutilação e que existem outras maneiras de
enxergar suas atitudes. Que o importante é ela ter sido e que o não-ser não existe.
Eu queria dizer tudo isso
e muito mais. Mas não sei se eu consigo... Lá no fundo eu achei a história da
Dora muito triste e não me sentia a pessoa indicada para transformar aquilo em
algo bonito, como ela merecia. Preciso admitir que meu primeiro desejo foi
poder ser uma cirurgiã especialista em rabos de lagartixas, estudiosa aplicada
e conhecedora de novas técnicas. E com todo o meu entendimento eu arremataria
os últimos vestígios caudais numa cirurgia perfeita! E a Dora morreria feliz, acreditando ter sido sempre uma lagartixa sem rabo.
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