quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

medo de (a)mar III





em frente ao mar, 18 de janeiro de 2016  

Joana,

a carta segue a lápis, o que tem sido incomum nos últimos tempos. minhas mãos coçam, tenho tentado fazer a vida seguir na espuma dos dias, assim, como bolhas na superfície das ondas que se movem em busca de um respiro. é preciso ter cuidado, Joana, ali, na leveza, corre-se o risco de arrebentar-se e cair na imensidão do oxigênio, numa mistura indefinida. não é o que queremos agora. da mesma forma que a espuma desenha o mar, há um limite em mim e ele se faz na ponta dos dedos, você sente?

o limite da onda é a espuma e acima dela acabou o mar e vira outra coisa. as pessoas amam até que as coisas se explodem numa imensidão disforme de oxigênio.

não gosto muito do que estou dizendo... às vezes gosto, às vezes não gosto, penso que digo pelo medo de tudo isso que não se diz mas que cresce ilimitado e sempre mais e mais e mais... 

“nem se eu bebesse o mar, encheria o que eu tenho de fundo”  

um mar inteiro. um amor inteiro. e eu, inteira de falta. resolvo que hoje eu não vou entrar no mar, Joana. ele fica, ele espera... há escolha? pois a minha está feita, hoje estou feliz em ver o mar não se acabar.

um sopro,
T.

Para ouvir: Queixa - Caetano

domingo, 10 de janeiro de 2016

um cuidado sob(re) a força


o molho de chaves balançava na cintura fazendo barulho. o andar devagar. ritmado. a pausa.      a casa era dela e disso ninguém ousava duvidar, foram quantos anos, carregando as chaves? a memória se ocupa desse dia e o tempo é outro, lento... aquele calor de Montes Claros, a água que não mata a sede e eles insistem em dizer que é a melhor do mundo! meus olhos ficam na altura daquelas chaves e demoro a perceber que falam comigo. ela está lá, parada na escada da frente, não tem barulho de chave mais... eu sou criança, preciso subir e apanhar algo que caiu no chão, uma identidade. faço isso e todos eles me olham, o silêncio me olha também, sou uma boa menina. me abaixo, pego o que caiu e entrego a ela, tenho medo. e tenho vergonha. tenho vergonha de sentir medo. as chaves voltam a chacoalhar, desaparecem. mas há portas abertas - fresta fissura convite! não sabia o que queria ver então vi. um encontro, um sorriso. é preciso reinventar mais uma vez a memória: observo o amor passar pelos buracos das fechaduras, e é assim que agora você me olha... a partir de hoje, quando refizer essa história eu escolho isso.

'você escolheu ser feliz?'




Para ouvir: Beira-Mar Novo por Coral Trovadores do Vale

(do te-ser memória_3)

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Casa da praia, dezembro de 2015

Clarice,

estive meio louca esses dias, coisa de mulher. cheguei para o marido de uma amiga e disse a ele que me escutasse, que eu ia dar um conselho para o casamento deles ser feliz. pedi a ele que deixasse render os dramas dela, não fizesse pouco caso. sabe o que é, a mulher é sensacional, se posiciona, conversa, se mantém firme o ano inteiro... faz análise toda semana! mas, assim, às vezes a gente precisa, né? não dá pra se manter na linha o ano inteiro, sublimando, escrevendo, trabalhando... um draminha de dezembro, as mulheres merecem! falei para ele entender, não dizer que é TPM e fazer a parte dele direitinho no drama dela, coisa pouca, umas horinhas só e já dá pra ficar feliz, é até bonitinho. (risos)

ai, falei, Clarice! doida que eu estava. mas você não concorda? ele concordou sem reclamar, muito bem casada essa minha amiga, marido ótimo.

eu estou sem homem esses dias, final de ano ele trabalha tanto! comecei a tomar Frontal faz uma semana, mas o médico disse que é só um mês, ando tendo uns baratos legais por causa do remédio, não sei se com o tempo passa. Mas estou boa, acredite! sábado fez um solzinho, cheguei da praia cansada resolvi assistir “Vicky, Cristina, Barcelona”, as histéricas do Wooddy Allen são incríveis! apesar de eu preferir Almódovar.

Sabe que aqui no Brasil andam falando de você e Guimarães Rosa? escritores do modernismo! água, sertão e outras coisas mais! cá, entre nós, vocês já vem se entendendo antes desses teóricos que eu sei. falam muito sobre as paisagens no texto dele e não percebem que o que você escreve também é paisagem. Mas eu sei de gente que vê, não se preocupe, deixa como segredo de mulher, por enquanto.

um abraço amiga,
escreva breve,
Penélope.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

o que resta

Desenho: Danielle Souza
o que resta é o corpo, esse inevitável. e com ele a invenção.
um corpo que escreve. que sente, que pulsa, que vive.
um corpo que tropeçou naquilo que um dia fora a possibilidade única de si.
maçã que falta. maçã mordida. maçã marcada de desejo. maçã com semente, possibilidade de fazer nascer. então nasci mulher e não sabia dizer bem.

mas ia dizendo. que seja assim, sendo.
bem dito o fruto do vosso ventre mulher... bem dito o desejo que me fez nascer...


sábado, 7 de novembro de 2015

Vaca amarela


Nem mais um pio! a mãe dizia. Lá no fundo do quintal, o passarinho já de olhos bem abertos queria acordar para fazer a menina feliz. 

O silêncio tinha um rastro amarelo e ocupava este lado da casa. Sentava sem medo onde quer que fosse e ficava observando a menina. A boca fechada para não entrar mosquito, não era uma escolha engolir uma a uma as palavras que queriam dobrar a língua. Passou a inventar os caminhos por onde sairiam silenciosas, sem que ninguém percebesse.

“Não! Não nasci para engolir a bosta de ninguém!” queria falar primeiro, gritando.

Mas antes que pudesse, o gato comeu a língua dela, bebeu todo o leite e fez a vaca pular da janela.


(do te-ser memória_2)

sábado, 24 de outubro de 2015

despertar

     os começos sempre me escapam
(e talvez por isso eu insista em escrever)
sei que eu corri, mas não fiz nada para impedir. apenas abri os olhos e esperei, como repetiria tantas vezes nos anos seguintes... talvez eu quisesse que acontecesse ou simplesmente não acreditasse que fosse possível. eu esperei olhando. a torneira aberta e ele insistindo. só na terceira tentativa aconteceu. ali o tempo parou. naquele relógio azul embaixo d'água. a água passa e o tempo fica. não havia mãe capaz de consertar o tempo. de fazer o tempo voltar a correr.

era uma vez, um presente.

ouvindo: Depois de ter você - Adriana Calcanhotto


(do te-ser memória_1)

domingo, 16 de agosto de 2015

um texto que me descubra


eu querida de mim, querendo
eu sentida assim, sendo
eu, minha, sentindo isso
isso assim, de dentro, desse jeito
do meu jeito
desfio a memória
e escrevo
buscando sentido
buscando e sentindo
eu que só sei porque sinto
eu que sinto que não sei
estou nua por responsabilidade própria.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

visita

você tem vindo à noite,
quando é impossível
eu me convencer que não
está aqui
o inconsciente atravessado
na busca, a mesma que digo não querer
mas acordo do sonho querendo
quase sem culpa.

a consciência me contém:
"te segura, mulher!"

engano essa saudade sem educação
escrevo, finjo, dissimulo
a espera não existe 
se for pra ser,
que venha sem avisar
e chame quando estiver à porta.

Para ouvir: Amor, se acalme - Gal Costa

terça-feira, 14 de julho de 2015

da ordem

fale cá, ao pé do ouvido, sussurrando...
fale caminhando os dedos pelo meu corpo...
fale cada olhar que sabe parar em nós...
fale caindo em si, em mim, enlace...
fale casualmente da volta,
mas fique, se for o seu desejo.
acalma tua em língua em minha boca
que ofereço o meu silêncio
e inventamos o encontro.

Para ouvir: Um tom - Caetano Veloso

sábado, 11 de julho de 2015

correspondência

o que quer que possa ser,
peço que venha
sem palavras
como um livro,
ou uma fotografia
eu espero com medo
mesmo com boas intenções
é que bom e ruim nunca foram
opostos
em se tratando da gente,
o que fode tudo é a intensidade.
podia chegar o vinil novo da Gal
que talvez teríamos
passado as tardes ouvindo
e fazendo promessas do tempo
em que seríamos mulheres...
não aconteceu. não. nunca.
que me surpreenda simplesmente
por não ter sido
dessa vez
quero apenas algo que não signifique

Para ouvir: Sem medo nem esperança - Gal Costa

segunda-feira, 8 de junho de 2015

sobre o sopro, (h)a língua

um mês inteiro num único dia, hoje resolvi antecipar junho e reverto a espera com o que sei ter e estar. Admito que inventei. Há meses soltei o fio do desejo, não houve quem apanhasse a outra ponta, eu insisti e não vou me culpar por querer. Agora, as mãos entregues ao controle do barco, navego contra a correnteza acompanhada de algo que não me abandona mas silencia em perplexidade e me olha desconhecendo o caminho. Eu labirinto – passeio despretensioso – com uma escrita que sabe olhar e em respeito à mulher que não merece sofrer irei seguir, com cuidado. Me foi, me é, difícil abandonar a rota e eu resisto. existo. e revolto. e volto. volto. volto. Eu juro, é só chamar. Não! Encho os pulmões de ar sem fechar os olhos e não enxergo mais a margem, está feito o caminho para a vertigem, esse deslumbramento. Preparada para saltar nua e mergulhar em águas profundas não sinto medo e se você sentir peço que se arrisque ou que vá ler em outro lugar pois não tenho intenção de assustar ninguém que não mereça. Em instantes, num descuido o tombo será dado e essas palavras estarão derramadas ao chão, é provável que miseráveis, tal como a mãe primeira de Eros, e carentes em si mesmas, em honra materna, irão de ficar e permanecer. Eis aqui o que me resta, Que haja amor! – estou dizendo... E assim se fez texto, se fez palavra, se fez vírgula por sobre um corpo a(o )mar que não cansou de existir.