Começou
sem que ela percebesse. Quando deu por si estava remexendo na cadeira como se
procurasse uma posição menos incômoda. Pronto, estava feito. Bastava tomar
consciência de que havia algo de estranho e aquilo não lhe deixaria em paz. Era
sempre assim, contra a sua vontade aquela coisa surgia na região central do
corpo. Não sabia bem o que era, parecia algo que vinha do estômago. Talvez fosse
inclusive o próprio estômago! Resolveu levantar para ver se passava, andar pela
casa, distrair-se.
Foi
arrumar sua bolsa, mas ao chegar ao quarto lembrou-se de que já estava arrumada.
Não se importou: retirou o que havia e dispôs tudo cuidadosamente lá dentro
outra vez. Era uma bolsa retangular, grande, porém estreita, de alça pequena,
daquelas que se carrega de um ombro só e não dá para cruzar na frente do corpo.
Com
a bolsa em cima da cama colocou os cadernos encostados na parte maior. Em
seguida acomodou em uma das laterais a bolsinha de lápis a e na outra caixa dos
óculos. Acrescentou um cachecol no fundo e por cima, a carteira e uma maçã que
comeria no lanche. Era muito importante para ela essa disposição. Na hora de
carregar, a parte onde estava encostado o caderno ficaria para fora e a outra extremidade
em contato com o corpo. O caderno garantia o design perfeito. Acomodado ao pano
retangular formava uma superfície lisa e plana para quem a visse. A outra extremidade
acabava ajustando-se ao corpo de maneira que a bolsa ficava em contato com ela,
mais próxima. Desse jeito, era como se a bolsa fizesse parte dela, ‘como se fosse uma extensão do meu próprio
corpo...’ – constatou contente, para logo em seguida desanimar de novo.
Quisera ela ter domínio de si como tinha dos objetos da bolsa...
Seu
estômago parecia ter aproveitado seu momento de distração para ganhar vida
própria. E, ao contrário dos objetos guardados e ajeitados cuidadosamente, ela
não sabia o que fazer com ele. Parecia se esforçar por ganhar mais espaço, como
se a sua localização, logo abaixo do diafragma, espremido entre o esôfago e o
duodeno não bastasse para ele. Queria mais, exigia respeito. Fora do seu
controle o estômago se espreguiçava dentro dela.
Nessas
circunstâncias parecia-lhe tentadora a ideia de poder saber o que deveria ficar
em qual lugar. Testar a combinação mais confortável, ajustar quando não
estivesse dando certo, compreender o que pertencia a ela e o que fora
emprestado de outra pessoa. Separar em si os bens duráveis de não-duráveis, de
capital e de consumo. ‘Qual era mesmo a
diferença entre bens de capital e de consumo?’ Nas instituições públicas, os
primeiros precisavam ser patrimoniados. Ficariam para sempre registrados que
existiam. Como um CPF das coisas. Bastava jogar no computador e estaria lá.
Tudo que um dia pertencera à instituição ficava gravado para sempre com
plaquinhas de metal combinadas num imenso banco de dados.
Coisa
e gente se igualavam, ao ganharem ambas a categoria de número. O mundo estava
mesmo muito esquisito... Imaginava, daqui a uns anos o dia em que precisassem
de algo emprestado. É capaz que dissessem: ‘Você
sabe quem pegou o 23400/08?’, ouvindo de resposta. ‘Ah, deve ter sido o 324674899-2 lá do departamento 33.’ Sentiria saudade do nome das coisa: cadeira,
tapete, tesoura. Rodo podia virar número. ‘Palavra
feia é rodo’ – pensou. Mas esse
tempo ainda não chegara. Afinal, vassoura continuava sendo vassoura e “Seu
Antônio da limpeza” ainda era chamado assim. Talvez ela estivesse vivendo um
momento onde pessoas se igualavam a tarefas que faziam! Não queria mais pensar
sobre isso.
Fechou
o zíper e analisou seu trabalho. A bolsa tinha ficado como ela queria. Ao se
virar para sair do quarto uma percepção infeliz: as coisas dentro dela haviam
piorado. O movimento cessara. Fora tomada agora por um enorme vazio, como se seu
estômago houvesse sido retirado dali. Um buraco mesmo, por onde ventava
fazendo-a contorcer com o gelo. Por um momento se perguntou onde a banana que
ela havia comido há algumas horas atrás iria parar. Será que já tinha dado
tempo de ela percorrer todo o trajeto?
Tinha
quase certeza de que dentro dela não havia mais nada. Estava oca. Pelo frio que
podia sentir percorrendo as entranhas teve medo de o estômago ter se
transformado em um buraco negro e sugasse para si tudo que havia em volta. Já
estava imaginando como seria a própria implosão quando parou. Só podia estar
ficando louca. Não era possível! Onde já se viu uma coisa dessas? Estômago
buraco negro? Como ela, pesquisadora, moça estudada, conhecedora dos métodos
era capaz de pensar uma coisa dessas? Precisava se concentrar em algo concreto.
Iria
estudar. Ler artigos científicos poderia lhe fazer bem. Esquecer aquela bobagem
de frio na barriga. Mas não precisou nem se dar ao trabalho de escolher um tema
dentre os muitos assuntos para ler. Antes disso algo chamou sua atenção.
O
estômago reaparecera. Havia mudado de lugar! Ou seria melhor dizer que se
duplicara? Podia senti-lo no lugar certo, mas pelo visto mandara algo ir
resolver as coisas por ele. O que quer que fosse a coisa, abrira caminho entre
os outros órgãos e, numa tentativa de chamar sua atenção, instalara-se agora
próximo ao peito. Esfregou o local, tentando melhorar o incômodo... Estava lhe causando
uma dor enorme e começara a subir em direção à garganta.
Nesse
momento ela se revoltou, não podia permitir uma coisa daquela! Tentou determinada
fazê-lo voltar ao lugar de origem. Em vão. Embolara na garganta e se recusava a
descer. Quanto mais ela se esforçava para fazê-lo voltar, mais ele a sufocava.
Como um nó cada vez mais apertado continuava insistindo em subir. As coisas
ficaram insuportáveis. Ela cedeu. Que saísse então! Pela boca, pelo nariz pelos
olhos! Que a coisa derramasse tudo que tinha a oferecer!
E
assim o fez.
Ao
deixa-lo sair, mais calma, ela olhou bem fundo pra ele e quis conversar. Sentiu
compaixão. Como não percebera que precisava era de atenção? Não era apenas um
estômago, era o chamado de uma voz que vinha de dentro. E, acima de tudo, era
uma voz que vinha de dentro dela. ‘O meu estômago!’ – constatou feliz. – 'E de mais ninguém...'
Sorriu.
Acabara de afirmar a própria essência, ao admitir que aquilo tudo lhe pertencia. Finalmente, assumiu para si mesma que ela existia.